Um estudo publicado este mês no The Journal of Infectious Diseases mostrou que, durante uma grande epidemia de dengue, em média, 0,51% das pessoas que compareceram a hemocentros para doar sangue estavam infectadas com o vírus causador da doença (DENV), embora não apresentassem sintomas durante o procedimento.
A pesquisa revelou ainda que 37,5% dos pacientes que receberam as bolsas de sangue contaminadas e eram suscetíveis ao vírus (não tinham sido previamente infectados) contraíram dengue, mas não foi registrado nenhum caso severo da enfermidade.
“Na verdade, quando comparamos os pacientes que se infectaram durante a transfusão com aqueles que não receberam sangue contaminado (grupo controle), não vimos diferença significativa em relação à mortalidade ou mesmo à gravidade de sintomas como febre, mal-estar, sangramento ou plaquetopenia [diminuição no número de plaquetas no sangue]. São sintomas comuns tanto em portadores de dengue quanto em pacientes transfusionados de maneira geral”, contou Ester Sabino, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e diretora do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.
A pesquisa foi feita com apoio da Fapesp nas cidades do Rio de Janeiro (RJ) e de Recife (PE) durante a epidemia de dengue de 2012. O grupo pretende em breve iniciar um estudo semelhante para os vírus causadores de Zika e febre chikungunya.
Entre os meses de fevereiro e junho de 2012 – época em que ocorreu uma grande circulação do sorotipo 4 do DENV – todos os doadores do Hemorio e do Hemope foram convidados a participar do estudo e a doar uma amostra extra de sangue para análise em busca do RNA viral. Ao todo, foram coletadas amostras de 39.134 doadores. O resultado deu positivo em 0,51% dos casos. “Em Recife, houve semanas em que até 2% dos doadores estavam infectados com o vírus”, contou Sabino.
As bolsas de sangue contaminadas com o DENV-4 foram transfundidas em 22 receptores. Desses, apenas 16 eram suscetíveis à doença, pois não tinham marcadores de infecção recente por DENV-4. Ao final, seis pessoas foram efetivamente infectadas, resultando em uma taxa de transmissão transfusional de 37,5%.
Amostras sanguíneas dos receptores também haviam sido coletadas antes da transfusão para confirmar se o vírus foi adquirido durante o procedimento. Os receptores foram acompanhados nos 30 dias seguintes à transfusão para observação dos sintomas. “Este estudo mostrou que, durante grandes epidemias de dengue, ocorrem muitos casos de transmissão transfusional. Por que ninguém notava isso? Possivelmente porque o impacto clínico não é importante”, avaliou Sabino.
No entanto, a pesquisadora ponderou que o número final de pacientes contaminados no estudo foi pequeno e, portanto, não permite descartar a possibilidade de surgirem casos graves ao avaliar uma população maior.
Segundo dados do artigo, os primeiros casos de transmissão transfusional de dengue foram registrados em 2002, em três receptores de Hong Kong, na China. Em 2008, outros dois casos foram reportados em Cingapura. Mas, até o momento, apenas em Porto Rico foi identificado um caso que resultou em febre hemorrágica da dengue (FHD).
Estudo pioneiro
Realizado em parceria com Brian Custer e Michael Busch, ambos do Blood Systems Research Institute (BSRI), dos Estados Unidos, o estudo também contou com financiamento dos National Institutes of Health (NIH). Trata-se do maior levantamento sobre transmissão transfusional de dengue já feito no mundo e foi o primeiro a estimar a taxa de transmissibilidade (37,5%) nesses casos.
Por esse motivo, mereceu destaque no editorial da revista, em um texto escrito por José Eduardo Levi, chefe do Departamento de Biologia Molecular da Fundação Pró-Sangue/Hemocentro de São Paulo.
“A transmissão ocorreu independentemente da carga viral (do doador) e, interessantemente, todos os três componentes usualmente obtidos de sangue doado (plasma, hemácias e plaquetas) foram capazes de transmitir o DENV-4”, comentou Levi.
O editorialista afirmou ainda ser intrigante o fato de um pequeno volume de vírus injetado pela saliva do mosquito na pele humana ser muito mais danoso que 200 a 300 mililitros de vírus presentes em uma bolsa de sangue de um doador infectado.
“Isso sugere que a quantidade de vírus é menos importante do que a forma com que o patógeno é apresentado ao sistema imunológico. Tem sido mostrado que a estrutura da partícula viral se modifica de acordo com a temperatura corporal, que é diferente em mosquitos e em humanos. Além disso, a saliva do mosquito, que é o veículo pelo qual as partículas virais são injetadas na pele, tem importantes propriedades imunomoduladoras e antigênicas, que não estão presentes na transmissão transfusional”, explicou Levi.
O pesquisador acrescentou ainda que a replicação inicial do vírus nas células da epiderme (queratinócitos e células de Langerhans) poderia oferecer acesso ao tecido linfoide e à medula óssea – locais onde ocorre replicação viral intensa.
Medidas de prevenção
No Brasil, atualmente, a rotina dos bancos de sangue inclui testes para detecção de Aids (vírus HIV), hepatite C (vírus HCV), hepatite B (vírus VHB), vírus T-linfotrópico humano (HTLV), sífilis (bactéria Treponema pallidum) e doença de Chagas (protozoário Trypanosoma cruzi).
Segundo Sabino, arbovírus como os causadores de dengue, Zika, chikungunya, atualmente, só são possíveis de serem detectados por testes moleculares do tipo PCR – mais caros do que testes sorológicos, que buscam anticorpos. Para a pesquisadora, ainda não há evidências consistentes de que seja necessário triar os doadores de sangue para a presença do DENV.
No editorial, Levi afirmou que, quando investigados mais profundamente, os casos de transmissão transfusional podem causar doença sintomática e medidas de prevenção efetiva devem ser adotadas pelo menos no caso de uma parcela de doadores mais vulneráveis.
Os pesquisadores ainda comentaram a possibilidade de adotar, no futuro, técnicas de inativação viral para tratar todo o sangue doado para fins de transfusão.
“Com a popularização dos métodos de sequenciamento, tem sido mostrado que os seres humanos abrigam um verdadeiro viroma em seu organismo. Nosso plasma carrega inúmeros vírus diferentes – alguns não causam doença e alguns ainda não sabemos o que podem causar. As técnicas de inativação viral hoje disponíveis só podem ser usadas em plasma e plaquetas – não servem para hemácias. Além disso, elevam consideravelmente o custo do procedimento”, comentou Sabino. (Agência Fapesp)