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Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto:

Foto: Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Leonardo Boff, em seu livro A águia e a galinha, além de demonstrar, de maneira leve e prática, uma série de postulados da antropologia filosófica, produz uma explicação sobre a perspectiva baseada no ponto de vista. Em sua célebre frase, “o ponto de vista é a vista de um ponto”, cria-se um “complementarismo” (uma forma de doutrina de que tudo é complementar) entre praticamente todas as vertentes interpretativas do mundo, ou seja, cada uma não apenas é legítima e verdadeira, mas, sobretudo, não invalida as outras concorrentes, porque cada qual só é um “ponto de vista”.

Todavia, esse “complementarismo”, que tem o poder de igualar valores sem traduzir suas demandas históricas, pode ser muito mal interpretado, uma vez que “o ponto de vista é apenas a vista de um ponto”, os próprios processos de interpretação somente são verdadeiros se todos, ou a maioria, assim concordar. Eis que o relativismo está instaurado sob a égide protecionista do “ponto de vista”. Qual o problema desse tipo de perspectivismo? De fato, se alguém parar e pensar um pouco, pode encontrar nessa relação de complementaridade alguns problemas pequenos, médios e grandes. Aqui, cabem alguns pequenos (ou nem tão pequenos).

Ao levar às últimas consequências, no melhor estilo lógico de reductio ad absurdum (redução ao absurdo), o perspectivismo embutido no “ponto de vista”, alguém poderia abordar uma pessoa na rua e tomar-lhe as roupas e todos os pertences sob a pretensa alegação de que aqueles itens são seus. Caso fosse redarguido, o perspectivista responderia: o ponto de vista que certas coisas são suas não invalida o meu ponto de vista de que essas coisas são minhas. Entretanto, o próprio leitor tomou como inadequado o procedimento de levar ao limite o perspectivismo, já que percebeu que em muitos casos não é o ponto de vista que vai determinar a própria vista de um ponto, mas, antes, fatores externos, históricos e sociais que são incontornáveis. 

Essa linha de pensamento conduz inevitavelmente ao campo da epistemologia (teoria do conhecimento) contemporânea, sobretudo à crítica ao relativismo absoluto. Quando tudo se torna ponto de vista, nada permanece firme, a verdade, a ética, a justiça tornam-se categorias flutuantes, entregues ao sabor das subjetividades. A premissa de Boff, ainda que bem-intencionada em seu humanismo dialógico, pode ser apropriada por discursos que esvaziam a potência crítica da racionalidade, promovendo o que Paul Ricoeur chamaria de “hermenêutica da suspeita”, mas em um sentido degenerado: não mais uma leitura crítica das ideologias, mas a suspeita generalizada contra qualquer verdade possível.

Tome-se, por exemplo, o debate contemporâneo sobre as mudanças climáticas. Há um consenso científico robusto, respaldado por dados empíricos, de que o aquecimento global é uma realidade mensurável e grave. No entanto, em nome de um certo perspectivismo radicalizado, surgem vozes que afirmam que o aquecimento global é “apenas uma opinião” ou “um ponto de vista ideológico”. A equação de todas as perspectivas a um mesmo nível de validade produz, paradoxalmente, uma paralisia da ação ética: se tudo é interpretação, nada obriga, nada compromete. O ponto de vista torna-se então um álibi para o negacionismo.

Do mesmo modo, a discussão em torno de direitos humanos enfrenta o mesmo dilema. Ao se aceitar, como legítimo, qualquer ponto de vista, corre-se o risco de colocar, em um mesmo patamar, a defesa da dignidade humana e os discursos de ódio. A crítica à tortura, por exemplo, pode ser relativizada sob a lógica do “meu ponto de vista é outro”. Ora, nem tudo pode ser ponto de vista, pois há fatos que transcendem as opiniões individuais. Como advertia Hannah Arendt, os fatos são teimosos, já que eles persistem, mesmo quando negados, e sua recusa deliberada constitui uma forma de destruição do mundo comum.

Além disso, é necessário reconhecer que os pontos de vista não nascem no vácuo. Eles são historicamente situados, atravessados por relações de poder, construídos por tradições discursivas, moldados por práticas institucionais. O perspectivismo, quando desprovido dessa consciência crítica, transforma-se em uma ilusão de pluralismo, que, na verdade, esconde profundas assimetrias. Como lembra Michel Foucault, o saber nunca é neutro; ele é sempre atravessado por forças que o constituem e o orientam. Assim, o “ponto de vista” do colonizador não pode ser legitimado da mesma forma que o do colonizado, pois há, entre ambos, uma diferença abissal de experiência histórica, de violência sofrida e de acesso à produção discursiva.

Portanto, ao problematizar o perspectivismo encapsulado na fórmula de Boff, não se trata de negar a importância do diálogo e da escuta do outro. Trata-se, sim, de reconhecer que há critérios, éticos, epistemológicos e políticos, que devem nortear a validez das perspectivas. O “ponto de vista” não é um passaporte automático para a verdade. Ele precisa ser tensionado, confrontado, validado por sua capacidade de dialogar com o real, de resistir à crítica, de produzir efeitos emancipatórios.

Assim, a pergunta que permanece em aberto, talvez mais provocativa do que conclusiva, é a seguinte: será que o perspectivismo, ao pretender ser um abrigo para a diversidade, não se converte, inadvertidamente, em cúmplice da indiferença? Afinal, se tudo é apenas uma vista de um ponto, o que resta da verdade, da justiça, da alteridade? É necessário, pois, não apenas ver de um ponto, mas saber de que ponto se vê  e, sobretudo, a quem esse ponto serve.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.