O Supremo Tribunal Espanhol proferiu recentemente a Sentença nº 854/2025, confirmando condenações por tráfico de drogas com base em comunicações obtidas da plataforma EncroChat, sistema de telefonia criptografada utilizado por milhares de pessoas na Europa. É a primeira vez que o Tribunal Supremo reconhece formalmente a validade dessa prova, cuja origem e método de obtenção vêm sendo duramente questionados por advogados e juristas em diversos países.
O caso representa um marco decisivo no debate sobre a admissibilidade de provas digitais e sobre até que ponto as autoridades podem recorrer a operações tecnológicas de vigilância massiva em nome da segurança pública.
Segundo a decisão, ainda que a ingerência tenha sido massiva, ela não seria prospetiva, isto é, não teria o propósito de vigiar todos os cidadãos, mas de interceptar comunicações vinculadas a atividades criminosas. O Tribunal ressalta que a medida foi autorizada judicialmente na França, considerada lícita e constitucional pelos tribunais locais, e cumpre os padrões mínimos de direitos fundamentais previstos na Diretiva 2014/41/CE e na jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH).
No entanto, o precedente mais próximo, o caso Big Brother Watch e outros vs. Reino Unido, mostra que medidas de vigilância em massa só são compatíveis com a Convenção Europeia de Direitos Humanos quando acompanhadas de controles judiciais rigorosos e proporcionais. Naquele caso, o TEDH entendeu que houve violação do direito à vida privada, o que pode vir a influenciar o futuro julgamento da EncroChat pelo mesmo tribunal.
Há ainda outro ponto sensível: a cooperação entre autoridades francesas e espanholas. O Supremo reconheceu que o Ministério Público da Espanha podia solicitar a prova à França mediante Ordem Europeia de Investigação (OEI), já que a transmissão envolvia apenas material que as autoridades francesas já possuíam. Porém, documentos da Eurojust e Europol revelam que autoridades espanholas participaram ativamente das reuniões de investigação, o que levanta dúvidas sobre se a Espanha teve papel mais direto na obtenção das provas do que admite a sentença. Caso essa participação seja comprovada, o simples pedido do Ministério Público não seria suficiente para validar o material, e a cooperação deveria ter obedecido a trâmites formais de investigação conjunta.
Outro aspecto controverso diz respeito à falta de notificação da Espanha pela França durante a interceptação. A lei europeia prevê que o Estado onde a medida é realizada seja informado, mas o Tribunal espanhol tratou essa omissão como mera irregularidade processual, não causa de nulidade. Já um tribunal em Berlim considerou essa mesma falha suficiente para invalidar totalmente a prova.
Também é discutível a aplicação, pelo Supremo espanhol, do princípio do reconhecimento mútuo, que impede revisar a legalidade das medidas tomadas por outro Estado-membro. O Tribunal entendeu que não cabe à Espanha avaliar a licitude do procedimento francês, bastando verificar a forma como a prova foi incorporada ao processo interno. Contudo, a própria legislação espanhola, e a jurisprudência citada pelo próprio Supremo, exige um controle material sobre a legitimidade da ingerência original, o que pressupõe examinar o modo como a França obteve os dados.
Se os padrões mínimos de proteção não forem efetivamente equivalentes, como parece ocorrer no caso francês, o juiz espanhol teria o dever de avaliar a licitude da prova à luz do direito interno e europeu. Do contrário, corre-se o risco de transformar o princípio do reconhecimento mútuo em um “cheque em branco” para investigações invasivas realizadas fora do país.
Por fim, o Supremo sustenta que a prova EncroChat pode fundamentar condenações quando usada de forma corroboradora, ou seja, junto a outras evidências como vigilâncias, apreensões e testemunhos. O raciocínio, no entanto, gera confusão: se a licitude da prova é duvidosa, sua validade não pode depender da quantidade de outras provas existentes. Uma prova é ou não é válida, e apenas depois se discute seu peso no conjunto probatório.
A questão, portanto, transcende o caso espanhol. Ela atinge o coração do debate sobre soberania digital, privacidade e direitos fundamentais na era da criptografia. Se tribunais nacionais aceitarem provas obtidas por mecanismos de vigilância maciça, sem o devido controle judicial e sem transparência sobre a cadeia de custódia, abre-se um precedente perigoso: o de permitir que a exceção investigativa se torne regra processual.
O caso EncroChat é mais do que um episódio policial europeu. É um alerta, e talvez o primeiro grande teste, sobre como o direito penal vai se adaptar às provas digitais obtidas em redes transnacionais, fora dos limites tradicionais da jurisdição.
*Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Doutorando em Direito – Estado de Derecho y Governanza Global (Justiça, sistema penal y criminologia), pela Universidad D Salamanca – Espanha. Mestre em direito – ciências jurídico criminais, pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela Católica – Faculdade de Direito – Escola de Lisboa em Ciências Jurídicas. Pós-graduado em Direito penal econômico europeu; em Direito das Contraordenações e; em Direito Penal e Compliance, todas pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela PUC-RS em Direito Penal e Criminologia. Pós-graduando pela EBRADI em Direito Penal e Processo Penal. Pós-graduado pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) Academy Brasil –em formação para intermediários de futebol. Mentor em Habeas Corpus. Presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Internacional da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim).

