Para compor esta nota, foi selecionado um texto do francês Lois Althusser, de sua obra “Iniciação à filosofia para os não filósofos”, sobre a abstração filosófica. Em seu embasamento materialista, derivado do marxismo-leninista, Althusser volta-se ao empirismo para demonstrar como todos estão ligados aos sentidos e suas experiências, mas que para expressá-las é necessário um trabalho extra: a linguagem. Eis onde é possível residir a fundamentação de todo repertório de construção comunicativa, uma vez que sem a linguagem, a própria formulação de um pensamento é comprometida, muito pior fica a sua transmissão.
Abstrair, para o filósofo francês, é separar. Todavia, a linguagem, por sua natureza, já é uma abstração que, por sua vez, conduz à nova separação. Para organizar as ideais para o leitor e, ao mesmo tempo, instigá-lo à leitura althusseriana de maneira crítica, é importante ressaltar que a abstração, tal como concebida por Althusser, é um produto da capacidade humana de isolar mentalmente objetos e fenômenos por meio do aparato cognitivo, sendo esse expresso principalmente por meio da linguagem (aqui se estende o conceito para língua também). Nesse direcionamento explicativo, a abstração já é o uso da própria linguagem, contudo, esse uso é direcionado a fins específicos que determinam quais tipos de abstrações emergem de seus respectivos objetivos, mais do que isso, quais características possuem essas abstrações.
Althusser afirma que as abstrações práticas, advindas do próprio cotidiano, como entender como uma chave entra em uma fechadura e, com seus dentes, move as peças internas da fechadura liberando ou travando a lingueta da porta, são as primeiras e mais elementares abstrações. Essas abstrações compreendem as ocorrências sob as quais todos podem estar sujeitos, ora pela dimensão usual, ora pela dimensão do trabalho, entre outras. A partir dessas abstrações emergem as outras duas, a científica e a filosófica. A primeira vincula-se ao processo de conhecimento de fenômenos pelo isolamento das partes de um todo para, desse modo, criar, por abstração, uma virtualidade sistematizante de certos funcionamentos de objetos e de seres. O filósofo marxista explica que essa abstração científica é universalizante, porque, a partir de um conjunto de elementos extraídos do mundo concreto, cria-se a compreensão de um todo universal.
Um exemplo dessa abstração científica é a postulação do sistema circulatório do sangue do corpo humano por Claúdio Galeno (entre o séc. I e II d.C.) que não estava presente apenas nos corpos investigados pelo pesquisador, antes, encontra-se em todos os animais, com suas variações, entendidas, mais uma vez, pela abstração científica. Em contrapartida, a abstração filosófica, segundo Althusser, volta-se não somente para o verificável, em seu aspecto universalizante, mas ela supõe o suplementar, o que pode existir, ou melhor, o inexistente. Portanto, seu caráter é totalizante, porquanto pretende compreender tanto o existente, por meios das relações entre as abstrações práticas e científicas, quanto o inexistente, por meio de uma dialética das condições de existência. Isso quer dizer que a abstração filosófica, como descrita pelo filósofo francês, é um exercício de abstração da própria abstração.
Refletir sobre o vazio, sobre a unidade do todo, sobre a existência de Deus, abstrações filosóficas por natureza é um tipo de desvio das abstrações prática e científicas, cujas finalidades são palpáveis. Se, por um lado, a abstração filosófica althusseriana eleva o pensamento a um patamar de totalização que inclui o inexistente e o possível, por outro, ela corre o risco de se divorciar do concreto a ponto de minar sua própria utilidade prática. Ao caracterizar a filosofia como um “exercício de abstração da própria abstração”, Althusser parece legitimar uma atividade especulativa que pode, em sua forma mais extremada, afastar-se tanto das condições materiais que acaba por produzir discursos autoreferenciais, fechados em si mesmos. O perigo reside precisamente na glorificação desse “desvio” das abstrações prática e científica, pois uma filosofia que se contenta em refletir sobre o vazio, a unidade do todo ou a existência de Deus, sem estabelecer pontes de retorno ao real, tende a se tornar estéril, ou pior, ideologicamente complacente e alienante.
Historicamente, não faltam exemplos de como abstrações filosóficas desconectadas da práxis podem servir a interesses conservadores ou alienantes. Quando a filosofia se torna um jogo de conceitos destituído de compromisso com a transformação das condições existenciais, ela perde sua potência crítica e pode até mesmo atuar como justificativa teórica para manutenção de injustiças. O próprio Marx, de quem Althusser se declara herdeiro, já advertia: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Uma abstração filosófica que ignora esse imperativo transformador corre o risco de trair o espírito do materialismo que Althusser pretende defender.
Além disso, a suposta superioridade da abstração filosófica, por ser “totalizante”, pode obscurecer o fato de que a ciência também opera com totalizações provisórias e modelos explicativos abrangentes, que constantemente são postos à prova pela realidade empírica. Enquanto a filosofia althusseriana parece reservar para si o domínio do “inexistente”, a ciência frequentemente lida com entidades e relações não observáveis, como átomos, campos quânticos ou estruturas matemáticas, que, no entanto, produzem efeitos tangíveis e aplicações práticas indiscutíveis. A distinção, portanto, parece mais uma questão de ênfase metodológica do que de natureza ontológica.
Contudo, a crítica aqui elaborada não pretende invalidar o projeto althusseriano, mas sim tensioná-lo em direção a uma autorreflexão produtiva. Se a abstração filosófica deve mesmo aspirar à totalização, que essa totalização não seja um voo solitário rumo ao abstrato, mas um movimento dialético que parte do concreto, passa pelo científico e retorna ao concreto, agora compreendido em sua complexidade. A verdadeira “chave de ouro” para essa discussão talvez esteja na reconexão entre os dois tipos de abstração: a científica, com seu rigor e ancoragem no verificável, e a filosófica, com sua abertura ao possível e ao inexistente, podem e devem fertilizar-se mutuamente. Somente assim a filosofia cumprirá seu papel não como mero “desvio” contemplativo, porém, como consciência crítica e projetiva do humano, capaz de inspirar tanto a compreensão quanto a transformação do mundo. Afinal, abstrair é separar, mas também é, na melhor tradição do pensamento, re-ligar.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.

