A detenção de uma mulher de 34 anos, usuária de crack, em Araguaína, município do norte do Estado do Tocantins, resultou em uma decisão judicial que, além de fundamentos jurídicos baseados em leis e decisões de tribunais superiores, aprofunda o tema sob o viés social.
A decisão, proferida após audiência de custódia, é do juiz Antônio Dantas de Oliveira Júnior que, além de relaxar a prisão da mulher, entre outras medidas, determinou seu encaminhamento para CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial Álcool e Drogas) “para acompanhamento da dependência química”.
O caso é o seguinte: No dia 4 de agosto, após denúncia anônima, M.N.C. foi presa por tráfico de drogas pela Guarda Municipal com 2,8 gramas de crack e dinheiro, em um posto de combustível na cidade. O nome da acusada será preservado.
Ele deixou de “homologar o auto de prisão em flagrante lavrado em face de M. N. C. e, por conseguinte, relaxou a prisão flagrancial, com base nos artigos 5º, caput, inciso LXXVIII, da CF/88 e art. 310, inciso I, do Código de Processo Penal, por ter sido medida invasiva, maculando os direitos fundamentais da intimidade, privacidade e da liberdade (art. 5º, caput, inciso X, e o parágrafo segundo, do art. 240 do CPP)”.
Aspectos técnicos
Tecnicamente, a decisão que relaxou a prisão da acusada se baseou em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), segunda a qual seria necessário mandado de busca e apreensão e não prisão com base em informações de testemunhas. “Na presente situação, entendo que o flagrante deve ser relaxado, como bem requerido pela defesa. Explico: Na situação dos autos, não houve justa causa para que a autoridade policial realizasse buscas pessoais sem mandado judicial, na medida em que, conforme depoimento dos guardas municipais, estes ficaram sabendo por terceiros que pessoas estariam cometendo o tráfico de drogas na região do entroncamento, próximo ao posto, na Comarca de Araguaína”, salienta o magistrado.
Suspeição genérica
Ainda conforme o juiz, “parte da jurisprudência atual, mormente do Superior Tribunal de Justiça, não aceita a suspeição genérica existente sobre indivíduos quando não houver justa causa, por exemplo, não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (denúncia anônima), são insuficientes para abordagem de um indivíduo”.
No despacho, o juiz afirma ainda que “não foi colhido nenhum depoimento dos populares que teriam informado o suposto tráfico de drogas, praticado por duas pessoas na região do entroncamento, em Araguaína/TO”. “Como se vê, o fato de haver sido encontrado aproximadamente 2,8g de substância aparentando ser crack e dinheiro com a flagranteada (...), após a revista não convalida a ilegalidade prévia, eis que é necessário que o elemento “fundadas suspeitas de posse de corpo de delito” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência”, citou. “Soma-se ao fato que a denúncia anônima, segundo a testemunha (...), relatou que seria um homem, com tais vestimentas, a realizar o tráfico de drogas supracitado, não tendo em momento algum mencionado ter conhecimento de uma mulher a traficar drogas”, complementou.
Ajuda voluntária
É abordado também, com muitos fundamentos, o aspecto social do problema. Logo na introdução do documento de nove páginas, o magistrado faz questão de destacar: “Antes de um usuário de drogas passar a ser um criminoso, ele precisou de ajuda voluntária ou compulsória para restabelecer a sua saúde. É de causar indignação ver que o Brasil não tem políticas públicas preventivas e de recuperação para pessoas viciadas em drogas, e todo esse caos desemboca na justiça criminal, a qual deveria ser a última da última a ser acionada”.
Em outro trecho da decisão, o juiz cita que M.N.C “relatou tomar remédio controlado para dormir, bem como alegou ser usuário de drogas, do tipo: “crack” desde 2015 e disse nunca ter feito tratamento quanto ao vício de drogas, dispôs que sua mãe está ciente de sua prisão”.
Andando em círculo
Na conclusão de seus argumentos, tanto jurídicos e sociais, Antônio Dantas de Oliveira Júnior aborda vários aspectos, entre eles, de segurança pública, criminalização da pobreza, direitos fundamentais, políticas públicas de saúde, educação e até mesmo medidas eleitoreiras.
Em letras garrafais, ele finaliza o texto ressaltando que “o intuito desta decisão, devidamente fundamentada, com a lei, a doutrina e a jurisprudência, não é para enfraquecer a força policial e o combate ao crime”. No entanto, diz que “diante da criminalização da pobreza, pessoas hipossuficientes também sejam resguardadas quanto aos seus direitos fundamentais previstos na constituição federal e nos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é signatário”.
Para ele, “o Estado brasileiro precisa repensar e efetivar políticas públicas que previnam a criminalidade, sobretudo, auxiliando as pessoas a terem uma vida com dignidade (educação, saúde, saneamento básico, lazer, etc). Está clarividente que políticas públicas “eleitoreiras” são um câncer para o desenvolvimento do Brasil, refletindo grandemente na desigualdade social e, como consequência natural, no aumento da criminalidade, ou seja, está-se a andar em círculo ou para trás e não para frente”.
Polícia e sistema prisional aparelhados
O juiz lembra que “é dever do estado aperfeiçoar e melhor aparelhar, com serviços de inteligência, a polícia e o sistema prisional”. “No mesmo sentido, os atores do sistema de Justiça precisam ter a coragem de reconhecerem a falência do direito penal e do sistema prisional, na busca de melhorias que possam verdadeiramente combater e prevenir a criminalidade, sob pena de viver-se em um país apenas de simbologias e com um carga tributária exorbitante”, finalizou. (TJ/TO)