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Cotidiano

Trabalhadores da Cana, Juazeiro/BA.

Trabalhadores da Cana, Juazeiro/BA. Foto: João Zinclar

Foto: João Zinclar Trabalhadores da Cana, Juazeiro/BA. Trabalhadores da Cana, Juazeiro/BA.

Instituído em novembro de 2011, por meio da Lei Nº 12.519, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro, rememora a data do falecimento de Zumbi dos Palmares. Líder do Quilombo dos Palmares durante o período do Brasil colonial, Zumbi é hoje reconhecido como ícone da resistência negra à escravidão e pela prática da cultura africana no Brasil.

Contudo, na contramão das expectativas que a figura do líder suscita, o trabalho escravo não deixou de ser uma realidade no Brasil. Números atualizados registrados pela Campanha nacional permanente da CPT “De Olho Aberto para Não Virar Escravo” mostram que, em 2023, quase 3.500 pessoas foram encontradas em situação de trabalho escravo. Delas 3.288 foram resgatadas em ações coordenadas pelo Ministério do Trabalho.

Os dados da campanha apontam ainda que, desde que se iniciou o registro, em 1995, até 2024, a pecuária tem sido o setor de atividade com o maior número acumulado de casos identificados de trabalho escravo – 2.115, ao todo. Em seguida, figuram as lavouras - com 910 casos, incluindo entre outras culturas de grãos, de frutas, canaviais - e as carvoarias (501). Nos últimos 10 anos, o número de casos em lavouras passou a ultrapassar os da pecuária.

Perfil dos trabalhadores 

Trabalhadores negros, nordestinos e com baixa escolaridade são os principais entre os resgatados do trabalho análogo ao escravo. Nos últimos dez anos, mais de 34% das vítimas resgatadas de trabalho escravo não haviam completado o 5º ano e a faixa etária mais afetada foi de jovens homens de 18 a 24 anos. Além disso, pelo menos 53% do total de trabalhadores é da região Nordeste do país, segundo dados do Registro Nacional do Seguro-Desemprego analisados pela CPT.

Quando é traçado o perfil racial, entre os anos de 2016 e 2023, 82,0% das pessoas resgatadas são negras – que se autodeclaram pretas ou pardas. Nesse período, mais de 12 mil pessoas foram resgatadas do trabalho escravo no país. Dessas, 65,8% se declararam pardas, 16,8% pretas, 16,0% brancas, 1,4% indígenas e 0,4% como amarelas.

Na visão de Cecília Amália Cunha Santos, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Araguaína (TO), esses números demonstram a herança colonialista do país e a reprodução da lógica escravocrata entre a elite brasileira. “A gente não vive mais no sistema colonial, oficialmente, mas as ideias da colonialidade continuam nas nossas relações. Então a percepção de que as pessoas negras não são dotadas de dignidade por parte dos patrões e empregadores, ainda está entranhada nas nossas elites”, explica.

A procuradora destaca ainda a vulnerabilidade da população negra decorrente desse passado escravocrata e do sistema racista ainda existente. “Do mesmo jeito que as pessoas brancas têm um acúmulo de privilégios, as pessoas negras, ao longo dos anos, passam por situações sociais, acumuladas por gerações, de déficit de acesso a direitos básicos, que acabam colocando essas pessoas historicamente numa situação de vulnerabilidade, mais expostas ao trabalho escravo. São tanto fatores sociais, desse histórico de acúmulo de violações aos direitos, quanto essa percepção colonialista, que ‘coisifica’ as pessoas negras”.

Trabalho escravo no ambiente doméstico 

No recorte de gênero, os dados mostram que, entre 2016 e 2023, 10.349 homens foram resgatados do trabalho escravo, enquanto que as mulheres correspondem ao total de 972 vítimas. Deste último número, as mulheres negras representam a maior porcentagem de resgatadas – isto é, 765 pessoas ao todo, quase 80%.

Brígida Rocha, agente pastoral da CPT regional Maranhão e integrante da Campanha “De Olho Aberto para não Virar Escravo”, destaca a manutenção do trabalho escravo em ambiente doméstico, que acomete principalmente as mulheres negras. “Os resgates que já aconteceram são principalmente de pessoas negras, algumas idosas que não tiveram acesso à educação, não têm contato com a família, não criaram novos relacionamentos, não tiveram acesso à saúde, não tiveram direitos previdenciários respeitados, têm fraudes em seus nomes ou não têm documento civil organizado”, detalha.

“No caso das trabalhadoras escravizadas, além da questão racial, elas são também atravessadas pela questão de gênero e por serem vistas nesse lugar do trabalho de cuidado não remunerado”, evidencia Cecília. Ela também explica que esses casos de trabalho doméstico decorrem da extrema vulnerabilidade financeira de famílias marginalizadas, que oferecem o trabalho das filhas, ainda crianças, em troca de estudos e acolhimento – que nunca se concretizam e culminam em trabalhos compulsórios.

 Diversas entidades se reuniram em junho na campanha #SôniaLivre, em defesa da liberdade de Sônia. (Foto: Divulgação)

O caso de Sônia Maria de Jesus, encontrada em situação de trabalho escravo na residência do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), Jorge Luiz de Borba, exemplifica tantos outros casos de mulheres mantidas em situação de trabalho escravo doméstico. Resgatada pelo Grupo de Fiscalização coordenado pelo Ministério do Trabalho em junho do ano passado, Sônia passou 40 dos seus 50 anos a serviço da família Borba.

Mulher negra e com profunda deficiência auditiva, Sônia nunca recebeu salário, assistência médica ou instrução formal. Além disso, ela sofreu violências físicas e vivia em situação degradante em um quarto na residência. Sônia foi tirada muito cedo da sua família biológica e mantida incomunicável durante todos esses anos.

Em setembro de 2023, com autorização do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Mauro Campbell, avalizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça, ela foi levada de volta à residência onde passou décadas cativa e onde permanece até hoje, e impedida de se relacionar com seus familiares. Em muitas histórias semelhantes, a defesa apresentada pelos exploradores tem sido a mesma: para negar qualquer relação de trabalho com a sua empregada, usam a narrativa de que essa mulher era “como filha da família”.

A ação da CPT 

Fundada em junho de 1975, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) surgiu da necessidade de denunciar a desigualdade e violência no campo no Brasil. A primeira denúncia de trabalho escravo foi realizada em outubro de 1971, por meio da carta pastoral "Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social", escrita pelo bispo da prelazia de São Félix do Araguaia (MT), dom Pedro Casaldáliga, um dos fundadores da Pastoral.

Desde 1995, por meio da Campanha nacional “De Olho Aberto para Não Virar Escravo”, a CPT trabalha nas frentes de acolhimento e apoio às vítimas do trabalho escravo e busca de alternativas, na denúncia de empregadores que utilizam mão de obra escrava, além de monitorar e cooperar para o aprimoramento de políticas públicas visando a erradicar o trabalho escravo.

“A CPT participa do fluxo de atendimento a vítimas do trabalho escravo, hoje formalizado em nível nacional, desde a acolhida aos trabalhadores e trabalhadoras, o registro de suas denúncias, as articulações para que ocorram as fiscalizações, a sistematização de dados e a elaboração de materiais para processos formativos e informativos. Nós conseguimos elevar essa capacidade de trabalhadores, trabalhadoras e da sociedade de refletirem sobre as causas culturais da escravidão e, também, de pensar nas estratégias de combate, a exemplo do que a gente tem feito junto a alguns municípios com forte incidência do problema, por meio da Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão – o programa Raice”, conta Brígida.

Em abril deste ano, durante o lançamento da publicação “Conflitos no Campo Brasil 2023”, a Comissão Pastoral da Terra anunciou a ação de sustentabilidade “Chega de Escravidão”, de modo a levantar fundos para seguir realizando sua missão no apoio à autonomia dos povos e comunidades em seus territórios. Entre no site www.chegadeescravidao.org.br e saiba mais sobre como fazer parte desta ação. (Approach)