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Opinião

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

A ética volta com força à paisagem política? Uma explicação plausível para o fenômeno é o sucateamento das velhas ferramentas que mexem com os valores da política, a corrupção que continua a solapar as bases da democracia, a ausência de critérios racionais na gestão da res publica, o jogo de interesses onde os cartolas e os dirigentes partidários dão as cartas, a violência que se espraia nos vãos e desvãos do edifício político, entre outras. 

Os espaços na mídia se mostram propensos a acolher um novo ciclo ético, conforme pode ser observado por impulsos dados por algumas organizações, como o Instituto Não Aceito Corrupção, diligentemente comandado pelo valoroso procurador de Justiça, de São Paulo, Roberto Livianu, que acaba de inaugurar um novo programa na mídia eletrônica (leia-se a TV Cultura) para disseminar a semente da ética. P.S. Diga-se, a propósito, que a TV Cultura atravessa uma fase promissora em sua programação, abrindo espaços para as correntes sociais e puxando para o foro de debates temas da maior relevância da pauta nacional.

A pertinência da questão se relaciona, conforme se pode deduzir, aos movimentos pela depuração ética, que brotam no seio da sociedade e o motor principal foram os eventos que sujaram as páginas da administração pública, desde os tempos da Lavajato, quando o fantasma da corrupção ceifou parte da credibilidade que banhava as estatais, a partir da Petrobras. Os recentes movimentos orientados para atestar a ideia de denúncias vazias e de que não teria havido corrupção nos governos do PT não conseguem convencer os defensores de um Brasil limpo, probo e justo.

Vou mais além. O impeachment do presidente Collor, lá atrás, foi a tocha que acendeu a chama ética na sociedade brasileira; e a fogueira ética que hoje ilumina o cenário político é resultante de uma tendência não apenas brasileira, mas internacional, que desloca eixos tradicionais de poder para a sociedade. Ela passa a ser mais autogestionária e determinada a cumprir as suas metas de bem-estar.

A ética na política e na administração pública é um dos instrumentos que a sociedade coloca no plano estratégico de suas lutas. O impacto imediato dessa vontade ocorre no palco político. A relação entre ética e política é bastante estreita, tratando a primeira, pela visão aristotélica, da análise das virtudes, a busca da felicidade, a consideração sobre o conceito de justiça e a segunda tratando da análise das normas constitucionais e dos regimes mais adequados para bem servir a comunidade.

Não há justiça, virtude ou felicidade à margem da sociedade política. O plano político afeta o plano ético e vice-versa. Donde se pode concluir que qualquer aperfeiçoamento ético no país tem fortes repercussões sobre a arena política, o terreno da administração pública, a relação entre o poder público e os grupos privados e o perfil da autoridade.

Volto aos fatores por trás da onda ética que se propaga por quase todas as regiões brasileiras. O despertar da racionalidade, como acima foi anotado, é um deles. O Brasil se afasta do ciclo da emoção. A sociedade toma consciência de sua força, da capacidade que tem para mudar, pressionar e agir. Trata-se de uma aculturação lenta, porém firme, no sentido do predomínio da razão sobre a emoção. O crescimento das cidades e, por consequência, as crescentes demandas sociais; o surto vertiginoso do discurso crítico, revigorado por pautas mais investigativas e denunciadoras da mídia; o sentimento de impunidade que gera, por todos os lados, movimentos de revolta e indignação; e, sobretudo, a extraordinária organicidade social, que aparece na multiplicação das entidades intermediárias, hoje um poderoso foco de pressão sobre o poder público - formam, por assim dizer, a base do processo de mudanças em curso.

Tudo isso se faz sentir no próprio conceito de democracia. Já se foram os tempos da democracia direta, aquela que nasceu em Atenas dos IV e V séculos, quando os cidadãos, na praça central, podiam se manifestar diretamente sobre a vida do Estado. Estamos vivendo a plena democracia representativa, que, por vezes, se introjeta de valores da democracia direta, estes que se expressam quando os cidadãos, por regiões ou dentro de suas categorias profissionais, tomam decisões, escolhem representantes e exigem deles mudanças de comportamento.

Uma sociedade pluralista propicia maior distribuição de poder, maior distribuição de poder abre caminhos para a democratização social e, por conseguinte, a democratização da sociedade civil adensa e amplifica a democracia política, de acordo com o pensamento de Norberto Bobbio. No Brasil, estamos caminhando firmes nessa direção e a prova mais eloquente da tendência se verifica na formidável malha de centros de poder instituídos em todos os âmbitos. Aproxima-se de um milhão o número de entidades não-governamentais, mostrando que a organicidade social é o mais impactante vetor de mudanças de nossos tempos. E mais: o Brasil começa a fechar o ciclo da política de oportunidades.

*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.