Em demonstração de força, unidade e indignação, integrantes da Comunidade Quilombola Rio Preto, ladeados por lideranças de movimentos negros e frentes de Direitos Humanos, ocuparam nessa quinta-feira, 18, a entrada da Justiça Federal em Palmas. O ato público é uma reação direta à sentença proferida no último dia 15, que autorizou a reintegração de posse do Lote 173 em favor da empresa Lagoa Dourada Participações e Serviços SC Ltda, ignorando a ancestralidade de um povo que ocupa o território desde 1911.
Paralelamente, mais de 25 entidades e organizações da sociedade civil subscreveram uma Nota de Repúdio e Solidariedade, classificando a decisão da magistrada Carolynne Souza de Macedo Oliveira como "contraditória" e um retrocesso civilizatório que ameaça a sobrevivência de dezenas de famílias tradicionais.
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Sentença e o "Apagamento Judicial"
Para os movimentos sociais, a decisão judicial padece de vício de origem ao priorizar um título de propriedade recente (2015) em detrimento de uma ocupação secular, exaustivamente comprovada por relatórios. "Embora a comunidade detenha a certificação da Fundação Cultural Palmares, o Judiciário optou por uma lógica estritamente civilista, desqualificando o caráter coletivo e sagrado da terra para os quilombolas", destacam os representantes dos movimentos.
"É inadmissível que o sistema de justiça ignore a posse imemorial e o processo de titulação que tramita no Incra", afirma a nota das entidades. A crítica central recai sobre a "asfixia do direito de defesa", dado que a ordem foi expedida às vésperas do recesso forense.
Ato na Porta da Justiça Federal
A mobilização em Palmas também expôs as chagas de um conflito marcado pela violência física e institucional. Segundo os relatos apresentados, a comunidade Rio Preto vive um cenário de "terrorismo agrário" promovido pelo grupo empresarial, que inclui:
Episódios de disparos de armas de fogo, incêndios criminosos contra residências quilombolas e ameaças ostensivas por milícias privadas travestidas de segurança armada
As entidades argumentam que o desmonte de equipamentos públicos, como o fechamento da Escola Municipal Bibiano Ferreira Lopes e da Casa de Farinha, são ações que visam asfixiar a economia local e apagar a identidade cultural do grupo.
"O aterramento criminoso de áreas de brejo e nascentes, perpetrado pela empresa Lagoa Dourada, o que compromete o ecossistema do Cerrado e a soberania hídrica das famílias", denunciam.
Confira abaixo a nota dos Movimentos Sociais Negros, Quilombolas e de Defesa dos Direitos Humanos:
Nota de repúdio: Contra o apagamento judicial e o despejo do Quilombo Rio Preto
“Florescemos em meio às terras arenosas do Cerrado. Descobrimos nos animais as experiências das histórias contadas e as certezas de estratégias montadas” (SILVA, Claudiana Matos da, apud Mumbuca, Ana Claudia Matos da Silva, 2019, p. 92)
O Movimento Negro Tocantinense, as Comunidades Quilombolas e as Organizações de Defesa dos Direitos Humanos e Socioambientais vêm a público manifestar seu mais profundo REPÚDIO à sentença proferida em 15 de dezembro de 2025 pela Juíza Federal Carolynne Souza de Macedo Oliveira, titular da 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Tocantins. A decisão, tomada no âmbito do Processo nº 1013274-44.2023.4.01.4300, decreta a reintegração de posse do Lote 173 em favor da empresa LAGOA DOURADA PARTICIPAÇÕES E SERVIÇOS SC LTDA, empresa que atenta violentamente contra as famílias quilombolas, ordenando o despejo de famílias que compõem o Quilombo Rio Preto, uma comunidade tradicional quilombola com mais de cem anos de existência.
1. A invisibilização da Territorialidade Quilombola
Sob o pretexto de um aspecto técnico, a sentença apresenta graves equívocos que ferem o ordenamento jurídico brasileiro e os tratados internacionais. Ao condicionar a proteção do território à conclusão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) pelo INCRA, o Juízo converte um direito fundamental originário em mera expectativa administrativa. O Supremo Tribunal Federal (ADI 3.239) já consolidou que o direito territorial quilombola é autoaplicável e o Estado apenas o reconhece, não o cria. A decisão ignora que a posse quilombola é coletiva e ancestral. Ao desconsiderar a certidão da Fundação Cultural Palmares, a sentença aplica uma lógica civilista inadequada para conflitos que envolvem comunidades quilombolas.
A magistrada, em sua sentença eivada de contradições, indeferiu pedidos de provas, não designou audiências e manteve o processo paralisado por dois anos sem despachar, mesmo sob sucessivos alertas de violências graves. O indeferimento da perícia antropológica e da inspeção judicial in loco impediu a reconstrução fiel da realidade histórica e social da comunidade que habita o território há mais de um século, priorizando uma análise meramente documental em benefício do autor.
2. O silenciamento diante da violência e dos atentados
Politicamente, esta decisão premia a violência e serve de combustível para o agravamento de conflitos agrários. Dados da CONAQ e Terra de Direitos indicam que a violência letal contra quilombolas dobrou entre 2018 e 2022, atingindo majoritariamente lideranças envolvidas na defesa de territórios tradicionais onde o Estado se omite. A sentença ignora que a comunidade é alvo de atentados, incluindo incêndios criminosos, fechamento de escolas e intervenção de fazendeiros junto ao erário municipal. Despejar a comunidade neste contexto é expor famílias ao risco iminente de morte.
3. Racismo ambiental e seletividade jurídica
Proferir tal ordem a apenas cinco dias do recesso forense asfixia o direito de defesa. A fragmentação artificial do território (separando os lotes 172 e 173) privilegia a acumulação de terras pelo latifúndio em detrimento da sobrevivência física e cultural da comunidade, desconsiderando o artigo 68 do ADCT da Constituição Federal.
4. Nossa luta é por vida e território
O Movimento Negro Tocantinense e as frentes de Direitos Humanos não aceitarão passivamente essa agressão que barbariza os direitos tradicionais. O RACISMO ESTRUTURAL não passará impune. O sistema de justiça precisa promover justiça, e não ser o braço executor da injustiça contra o povo negro.
O território quilombola Rio Preto existe antes do próprio Estado do Tocantins. É o berço da nossa ancestralidade e o escudo contra a ganância do agronegócio. A terra é quilombola por direito, por história e por destino. Exigimos a suspensão imediata dos efeitos desta sentença e a celeridade do INCRA na conclusão da titulação.
Palmas - TO, 17 de dezembro de 2025.
Assinam esta nota:
1- Coletivo Enegrecer Tocantins
2- Coletivo Feminista de Mulheres Negras do Tocantins, Ajunta Preta
3- Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins- COEQTO
4- Ierê - Núcleo de Igualdade Étnico-Racial e Educação da UFT
5- Grupo de Consciência Negra do Tocantins- Gruconto
6- Instituto Art' afro e Direitos humanos de Miracema
7. Coordenadoria Ecumênica de Serviço - CESE
8. Paróquia Anglicana do Bom Pastor - Salvador - Bahia
9. Coletivo de Mulheres, Políticas Públicas e Sociedade - MUPPS
10. Diversifica (UFRB)
11. Marcha Mundial das Mulheres - Núcleo Lélia Gonzalez
12. Batalha das Mil / Cerrado Rap
13. Movimento Kizomba
14. Coletivo Julho das Pretas Karen Luz
15. Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial - CEPIR/TO
16. Movimento Negro Unificado - MNU TO
17. Articulação Tocantinense de Agroecologia - ATA
18. Alternativas Para a Pequena Agricultura no Tocantins - APA-TO
19. Comissão Pastoral da Terra - Regional Araguaia Tocantins
20. Coalizão Vozes do Tocantins por Justiça Climática
21. Universidade Federal do Tocantins (UFT)
22. ADINKRA - Grupo de Estudos de Mulheres Negras
23. Movimento de direitos humanos do Tocantins MEDH - TO
24. Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Palmas - COMPIR
25. Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saberes e Práticas Agroecológica
26. Sintet - Regional de Palmas
27. Brcidades núcleo Tocantins.

