Uma recente decisão judicial proferida pela 17ª Vara da Justiça Federal de Brasília derrubou uma resolução de mais de 10 anos e agora pode impedir que farmacêuticos continuem a prescrever medicamentos. A ação civil pública, proposta pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), contra o Conselho Federal de Farmácia (CFF), teve decisão favorável aos médicos, reacendendo debates sobre os limites de atuação de profissionais da saúde no Brasil. Sob a perspectiva regulatória, é imprescindível analisar os fundamentos jurídicos e práticos dessa determinação, especialmente ao considerar a regulamentação da prescrição farmacêutica vigente desde 2013.
A Resolução nº 586/2013, do CFF, conferiu aos farmacêuticos a prerrogativa de prescrever medicamentos, dentro de parâmetros bem delimitados. Essa prática está alinhada com a promoção da atenção primária à saúde, onde o farmacêutico desempenha um papel central na orientação do uso racional de medicamentos, especialmente os isentos de prescrição médica (MIPs), além de suplementos, cosméticos, fitoterápicos e outros produtos de menor potencial de risco.
Como fundamento da decisão da Justiça do Distrito Federal, o juiz Alaor Picacin destacou que a Lei nº 12.842/2013, conhecida como Lei do Ato Médico, estabelece que o diagnóstico é ato privativo do médico, o que tem sido interpretado por alguns como um impeditivo para a prescrição farmacêutica. Esse entendimento, no entanto, merece críticas. O farmacêutico não realiza diagnóstico médico, mas utiliza seu conhecimento técnico para identificar condições autolimitadas ou orientar o paciente já diagnosticado no manejo de doenças crônicas, apoiando-o em seus cuidados permanentes em saúde, o que pode contribuir para a redução de riscos à saúde pública.
A recente decisão suscita a seguinte questão: afinal, entre o diagnóstico, a prescrição e o manejo de tratamentos, as profissões devem atuar com exclusividade ou complementaridade?
A argumentação de que a prescrição seria exclusividade médica por derivar naturalmente do diagnóstico ignora a natureza da atenção farmacêutica. O papel do farmacêutico não é diagnosticar doenças complexas, mas atuar em condições que não demandam avaliação médica aprofundada. Por exemplo, a prescrição de analgésicos para dores leves ou antitérmicos para febres moderadas não configura um ato médico, mas uma intervenção preventiva.
Além disso, os farmacêuticos têm expertise reconhecida em produtos que não são medicamentos tradicionais, como suplementos alimentares e cosméticos. Estes, quando utilizados de forma inadequada, podem também causar efeitos adversos. Restringir essa prática pode levar à automedicação desinformada, aumentando riscos à saúde da população. Até mesmo porque esses mesmos MIP’s podem ser adquiridos diretamente pelos pacientes, sem qualquer orientação médica ou farmacêutica, de modo que a possibilidade de ser orientado por um profissional de saúde aumenta a segurança para a população.
O Conselho Federal de Farmácia já anunciou que recorrerá dessa decisão, sustentando que ela representa um retrocesso na ampliação do acesso à saúde no Brasil.
Conforme argumenta o atual Presidente do Conselho. Dr. Walter da Silva Jorge João, “A Justiça já julgou favoravelmente ao CFF em outras 43 ações também movidas por entidades médicas contra essa mesma resolução. Há espaço para todas as profissões da Saúde atuarem em defesa do bem-estar e da qualidade”, completa.
Compõe esse cenário um dado curioso: na época em que a ação civil pública foi iniciada, em 2013, o Conselho Federal de Medicina não obteve liminar ou antecipação da tutela. Como estratégia predatória, ingressou com o mesmo processo em todos os estados da Federação, através dos conselhos regionais, o que originou uma multiplicidade de ações idênticas, e quase todas favoráveis aos farmacêuticos, confirmavam que não houve qualquer invasão de competência na edição da CFF 586.
Vale destacar que muitos farmacêuticos atuam hoje em atividade clínica, possuem consultórios, podem solicitar exames, realizam anamneses, e acompanham pacientes com tremendo sucesso clínico. Com muito esforço, a categoria obteve um CNAE específico para consultório farmacêutico. Tudo isso para, depois de 10 anos, vira a perder o direito numa sentença judicial bastante controversa.
O Judiciário pode, nesse contexto, avaliar os limites e a interseção entre os atos de diagnóstico e prescrição, garantindo que cada profissão mantenha sua autonomia e contribua de forma integrada ao sistema de saúde. A questão não demanda exclusões, mas complementos, união de conhecimento e de esforços. A decisão conflita com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), que preconiza a integralidade e a descentralização do cuidado. O farmacêutico, ao atuar na atenção primária, não substitui o médico, mas complementa a rede de saúde, ampliando o acesso e promovendo um cuidado mais eficiente e seguro.
O debate sobre a prescrição farmacêutica vai além da interpretação literal da Lei do Ato Médico. Ele demanda uma visão sistêmica, que valorize a atuação de todos os profissionais da saúde em suas competências específicas. A decisão judicial que restringe a prescrição farmacêutica ignora avanços regulatórios e coloca em risco a promoção da saúde pública, reforçando a necessidade de defesa de uma abordagem integrada e interdisciplinar no cuidado ao paciente.
O futuro desse tema dependerá da habilidade do sistema jurídico de harmonizar as competências profissionais com os princípios do SUS, garantindo que a população continue a ter acesso a cuidados de saúde abrangentes e qualificados. Não existe conflito de interesses. Há, sim, um objetivo em comum, qual seja a saúde de cada cidadão brasileiro.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.