Mais de nove mil indígenas deixaram a Venezuela e migraram para o Brasil na última década (2015 – 2024), conforme levantamento da InfoAmazonia com base em dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), em conjunto com o governo brasileiro. A análise dos boletins migratórios dessas instituições revela que, além da crise política e econômica no país, a migração dos povos também tem relação com impactos ambientais, como os causados pelas obras de represamento de rios e pelo avanço da exploração petrolífera na região.
A reportagem identificou, por meio do levantamento da OIM, 13 povos indígenas originários da Venezuela vivendo em todos os estados do Brasil. Entre os 3.725 indígenas contabilizados, a maioria pertence às etnias Warao (2.633) e Taurepang (703). Os dados consideram o fluxo migratório entre 2015 e 2024 e apontam que fatores climáticos e ambientais estão entre as principais motivações do deslocamento.
Veja no gráfico abaixo quais grupos indígenas foram mapeados no levantamento:
Povo Warao representa 71% dos indígenas migrantes venezuelanos no Brasil
Levantamento da OIM em conjunto com o governo brasileiro identificou 13 povos indígenas originários da Venezuela vivendo nos 26 estados do país mais o Distrito Federal.
Fonte: Organização Internacional para as Migrações (OIM). Análise e Visualização: InfoAmazonia.Entre as 65 comunidades indígenas entrevistadas pela OIM, 35% (23) afirmaram que seus territórios foram atingidos por inundações na Venezuela. A contaminação de água foi relatada por 19% (12), e a ocorrência de fortes chuvas foi citada por 14% (9) das comunidades entrevistadas na época.
Realidade em ascensão
Os indígenas estão entre os 568.058 venezuelanos presentes no território brasileiro, de acordo com dados atualizados até junho de 2024, pela Plataforma R4V, que monitora o fluxo e inclui informações de agências da ONU e da sociedade civil envolvida no processo migratório.
No Brasil, as primeiras mudanças sobre a migração foram sentidas a partir de Pacaraima, cidade fronteiriça ao norte de Roraima, porta de entrada para venezuelanos. Do outro lado da fronteira, no país vizinho, está a cidade de Santa Elena de Uairén.
Para lidar com o intenso fluxo de migrantes que começaram a entrar no Brasil por Pacaraima, em 2018, o governo federal criou a Operação Acolhida, que oferece atendimento aos venezuelanos, incluindo indígenas, por meio da regularização do processo migratório e do acesso aos abrigos. Atualmente, Roraima conta com sete abrigos, sendo três exclusivos para a população indígena: Janokoida, Waraotuma a Tuaranoko e Jardim Floresta, todos na capital Boa Vista. Juntos, esses espaços acolhem 1.893 indígenas, o que representa 32% dos 5.971 migrantes abrigados no estado.
Monumento da Venezuela na fronteira com o Brasil, por onde entram migrantes no país Crédito: Marcelo Camargo / Agência Brasil
No entanto, ainda em Boa Vista, há uma ocupação espontânea onde vivem migrantes indígenas em situação de vulnerabilidade na periferia. Antes, o local, um antigo ginásio de esporte do governo no bairro Pintolândia, zona oeste, era gerido pela Operação Acolhida. No entanto, foi desativado em 2022 por questões estruturais. As famílias indígenas seguem morando por lá.
Foi neste mesmo abrigo que em agosto de 2021 militares do Exército Brasileiro, responsáveis pela segurança, foram flagrados “punindo” indígenas no chamado “canto dos maus-tratos”, um espaço onde os migrantes eram detidos sem mandado judicial. À época, a história foi revelada pela Repórter Brasil.
O professor e pesquisador sobre migrações na Universidade Federal de Roraima (UFRR), João Carlos Jarochinski, acompanhou as mudanças na rotina e na cultura do estado com a chegada dos migrantes, principalmente em relação aos indígenas, que passaram a ser vistos com frequência nas ruas de Boa Vista.
“Essa primeira faceta visível [dos indígenas migrantes nas ruas] gerou também um processo no social, colocando esses indígenas numa condição de subalternidade em relação ao restante da população”, destaca o professor. De acordo com ele, houve muita dificuldade de aplicar as normativas internacionais e nacionais em relação aos povos originários.
Mulher indígena Warao fotografada nas ruas de Boa Vista, em Roraima Crédito: Yolanda Simone / Amazônia Real“No caso brasileiro, acho que o principal fator que agravou a situação de alguns desses grupos, foi a demora por parte do Estado no reconhecimento dessa condição de povos indígenas”, completa Jarochinski.
O problema citado pelo professor também foi apontado pela OIM. Em 2020, a organização denunciou que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não participava do processo de registros de documentação dos migrantes indígenas que chegavam no Brasil. A ausência da entidade também foi percebida no acompanhamento da presença de indígenas Warao em cidades brasileiras.
Em resposta à InfoAmazonia, a Funai disse que “acompanha o fluxo migratório dos indígenas venezuelanos desde 2016, porém, dentro de seus limites orçamentários, estruturais e de pessoal”.
Ainda na avaliação de Jarochinski, também é necessário que o debate sobre migração indígena seja ampliado para questões além das sociais, como as ambientais e culturais que envolvem cada povo.
“As pessoas que têm que deixar as suas localidades, seja de forma permanente ou temporária, necessitam de proteção, elas precisam de políticas públicas específicas para a sua realidade. É um tema bastante difícil no contexto internacional, que a gente precisa ir construindo aos poucos”, explicou.
Em razão da falta de ações específicas do governo brasileiro no contexto migratório indígena, organizações não governamentais desenvolvem projetos que integram as diferentes culturas indígenas. Um deles foi promovido pela Cáritas Brasileira na terra indígena de São Marcos, em Pacaraima. Desde 2019, a comunidade indígena Tarau-Paraú acolhe cerca de 600 indígenas venezuelanos do povo Taurepang-Pemon.
Comunidade indígena Tarau Parú acolhe indígenas migrantes da Venezuela (Foto: Cáritas Brasileira/Reprodução)De acordo o assessor nacional de monitoramento da Cáritas Brasileira, organização ligada à igreja Católica que atua no serviço humanitário, Wellthon Leal, falta estrutura, principalmente, para os indígenas que estão fora dos abrigos. “A gente está passando por um refluxo grande de apoio, de ajuda humanitária. Existe uma pressão internacional para que o governo brasileiro assuma isso”.
Em janeiro de 2024, a Cáritas chegou a anunciar a paralisação das atividades do Projeto “Wash Orinoco: Águas que atravessam fronteiras”, que oferecia serviços de água, saneamento e higiene aos imigrantes. O motivo foi a suspensão do repasse de recursos oriundos da USAID, anunciada pelo Governo Trump.
O Povo Warao
Maioria entre os migrantes indígenas venezuelanos no Brasil, o povo Warao vive na região delta do Rio Orinoco no nordeste da Venezuela, e é a segunda etnia mais populosa do país vizinho, com cerca de 49 mil pessoas, conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), da ONU.
O povo Warao iniciou o processo migratório por volta de 2013, quando a crise na Venezuela começou a eclodir – foi nesta mesma época que o presidente Hugo Chávez morreu e Nicolás Maduro assumiu. Nos anos seguintes, o sucateamento se agravou e milhares de pessoas deixaram o país, incluindo indígenas, mas o modo de vida do povo Warao inclui interferências territoriais registradas anos antes.
Em dezembro de 1960, um decreto assinado pelo então presidente venezuelano Rómulo Betancourt instituiu a criação da Corporación Venezolana de Guayana. O órgão seria encarregado de construir um dique-estrada para represar águas do rio Manamo, na bacia do Orinoco. O objetivo era criar um sistema de diques na região do delta Orinoco, que tornaria cerca de 300 mil hectares de terras até então inundáveis, disponíveis para a agricultura e para a pecuária.
Os povos indígenas, incluindo os Warao, no entanto, não foram ouvidos durante os estudos para implementação da intervenção, conforme um levantamento antropológico feito no país, o “Planificando el desastre ecológico”, feito por pesquisadores da Universidad Central de Venezuela (UCV), que analisa o impacto das obras executadas no delta do Orinoco.
À época, a obra avançou e a primeira parte foi entregue em 1965, com consequências ambientais à região e ao modo de vida dos povos. A principal foi a intensificação da salinização dos rios, que afetou a fertilidade dos solos e a diminuição da quantidade de água para consumo humano, além de prejudicar a vegetação e a pesca. O documento classifica o ocorrido como o “maior desastre ecológico da Venezuela”.
Anos depois, em 1976, uma grande enchente provocou mortes entre os Warao. Nos anos 1980, existia um movimento migratório em direção às cidades próximas, como Barrancas e Tucupita. Nos centros urbanos, os indígenas foram submetidos a trabalhos precários e governos locais construíram moradias improvisadas nas redondezas dos municípios para impedir que muitos se instalassem na zona urbana. Na década de 1990, o início da exploração petrolífera terminou em mais danos ambientais. A tendência migratória para os centros urbanos se mantém e comunidades inteiras deixam de existir.
Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Vozes pela Ação Climática Justa (VAC), que atua para amplificar ações climáticas locais e busca desempenhar um papel central no debate climático global. A InfoAmazonia faz parte da coalizão “Fortalecimento do ecossistema de dados e inovação cívica na Amazônia Brasileira” com a Associação de Afro Envolvimento Casa Preta, o Coletivo Puraqué, PyLadies Manaus, PyData Manaus e a Open Knowledge Brasil. (InfoAmazonia)