A profusão tecnológica dos da atualidade, com seus aparelhos hiperconectados, não se contenta em meramente mediar a nossa relação com o mundo; aspira, agora, a substituí-lo. A realidade virtual (RV), filha dileta desta era, apresenta-se não como um mero instrumento, mas como um novo horizonte ontológico, um espaço no qual a experiência pretende-se mais rica, mais controlável e, paradoxalmente, mais autêntica. No entanto, sob o véu sedutor desta promessa, opera uma transformação sutil e perniciosa: a passagem de uma linguagem que descreve o mundo para uma linguagem que o constrói, acarretando um distanciamento ainda mais radical da vida concreta. É na fronteira entre o real e o virtual que se trava uma batalha decisiva pela natureza da experiência humana.
Inicialmente, cumpre dissertar sobre esta mutação da linguagem. A linguagem humana tradicional, em sua gênese, era um instrumento de aproximação do concreto (principalmente a compreendida como língua). Nomeava o vento, a pedra, a dor e o afeto, tentando capturar, através do símbolo, a essência fugidia do real. Era uma linguagem do uso, moldada pela necessidade, pela fisicalidade e pela limitação. A linguagem que comanda os ambientes de realidade virtual, contudo, é de outra ordem. É uma linguagem técnica, binária, uma pura sintaxe desprovida de semântica existencial. Ela não descreve uma árvore; instrui o sistema a renderizar um conjunto de polígonos com texturas específicas que “simulam” uma árvore. Este salto é fundamental: deixa-se de usar a linguagem para interagir com o mundo e passa-se a habitar uma linguagem que “é”o mundo. O aparelho hiperconectado torna-se, assim, o medium (mediador) e a mensagem, o tradutor e a realidade traduzida, confinando a consciência a um universo de sua própria autoria, um solipsismo tecnológico.
Este fechamento progressivo no circuito da simulação gera o que se poderia denominar de uma “antinomia da imersão”. Quanto mais profundamente mergulha-se no virtual, mais superficial torna-se o engajamento com o concreto. A vida concreta, com sua resistência opaca, sua imprevisibilidade e sua dor irremediável, é substituída por uma experiência editável, um mundo sob demanda. A aspereza do tempo, a vulnerabilidade do corpo, a complexidade irredutível dos vínculos humanos, tudo é suavizado, otimizado ou eliminado no ambiente controlado da RV. O que se ganha em conforto e estímulo controlado, perde-se em textura existencial. A realidade, na visão do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, é constitutivamente dialética, composta de contrários em tensão perpétua: o bem e o mal, a potência e o ato, a plenitude e a carência. A fuga para o virtual representa uma tentativa de anular essa dialética, de criar um “mundo liso”, isento de contradição e, portanto, isento daquilo que forja o carácter e aprofunda a compreensão.
Mário Ferreira dos Santos, em sua filosofia concreta, alertava para os perigos da “fuga do ser”. Para ele, o ser humano tem a tendência de fugir das exigências da realidade concreta, refugiando-se em abstrações, ideologias ou, como hoje pode-se inferir, em realidades sintéticas. Tal fuga é uma negação da nossa condição de “entes situados”, seres cuja existência só adquire significado na relação tensa e transformadora com um mundo que nos transcende e nos limita. A RV, ao oferecer um refúgio onde o “eu” é o demiurgo platônico de seu próprio universo, corrói os alicerces dessa situacionalidade. O resultado não é a libertação, antes, uma nova forma de cativeiro: aprisionamento no espelho de próprias preferências e aversões, no qual se perde a capacidade de surpreender-se, de transformar-se pelo encontro com o outro e com o mundo em sua alteridade radical.
Não se trata, contudo, de condenar sumariamente a tecnologia, mas de compreender as suas implicações metafísicas. A realidade virtual, como ferramenta para expandir certas fronteiras do conhecimento ou da criatividade, possui um valor inegável. O perigo reside na sua elevação a paradigma existencial, na confusão entre o mapa e o território. Quando a linguagem do uso cede lugar à linguagem do uso “dos aparelhos”, e estes se tornam a lente primária através da qual a realidade é filtrada, arrisca-se a um empobrecimento catastrófico da experiência.
O desafio que se coloca, portanto, é o de resistir à sedução do mundo liso. O de reafirmar o valor da vida concreta, com toda a sua beleza árdua e sua verdade perturbadora. É lembrar que a mais sofisticada das simulações é, no fim, um conjunto de zeros e uns, um eco vazio de uma consciência que, para ser plenamente humana, precisa alimentar-se não do virtual, mas do real, por mais imperfeito e desafiador que esse seja. O futuro da sensibilidade humana dependerá da capacidade de usar tais tecnologias sem nelas se dissolver, mantendo os pés firmes no chão primordial da existência, na qual a linguagem ainda é eco do mundo, e não o seu substituto.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.