Há momentos em que a existência revela-se em sua plenitude, instantes nos quais o ser não se limita a pensar, ver ou agir, mas é, em sentido absoluto. Sempre que leio Louis Lavelle e sua ideia da “presença total do ser”, recordo uma das cenas mais poderosas de Os Cavaleiros do Zodíaco: a luta entre Ikki de Fênix e Shaka de Virgem. A filosofia e a animação, aparentemente tão distantes, encontram-se ali, no ponto em que o espírito toca o infinito.
Lavelle, em sua metafísica da presença, propõe que o ser não se divide em partes nem se reduz à soma de seus atos. Ele é totalidade, uma plenitude de presença que se manifesta quando a consciência se integra ao real sem resistências, sem reservas. A experiência do ser, para ele, é uma comunhão ontológica: estar presente a si e ao mundo em um mesmo movimento de interioridade e de abertura. Quando essa presença é alcançada, o homem participa do Todo, não como uma parcela que o observa, mas como a própria vibração da totalidade em ato.
É justamente esse estado que, paradoxalmente, Ikki alcança no momento em que tudo lhe é tirado. Shaka, o cavaleiro de Virgem, símbolo da iluminação e da serenidade budista, priva Ikki de todos os sentidos: visão, audição, tato, paladar, olfato. A cada golpe, a cada perda sensorial, parece que Fênix aproxima-se da aniquilação. Contudo, é no vazio extremo, quando já não há percepção nem mediação possível, que algo extraordinário acontece: ele desperta o chamado sétimo sentido.
Esse despertar, que a narrativa da série traduz em termos de poder cósmico, pode ser lido, filosoficamente, como a manifestação plena da presença do ser, do qual trata Lavelle. Privado do mundo sensível, Ikki não mais conhece o universo por intermédio dos sentidos, mas é o próprio universo que nele se reconhece. A ausência de mediações o coloca num estado de pura imanência, no qual o eu e o cosmos deixam de ser polos opostos para se tornarem uma única pulsação, isto é, a presença total.
Lavelle diria que, nesse instante, a consciência de Ikki não é mais um reflexo, mas uma presença ativa: uma participação imediata no ser, uma experiência total. A energia do cavaleiro de Fênix, que renasce das cinzas, é a metáfora perfeita dessa interioridade que se abre ao infinito como uma chama que não vem de fora, antes, do próprio centro da existência. Quando ele se ergue, derrotando Shaka, não é apenas o triunfo da força sobre a força; é o triunfo da presença sobre a ausência, da unidade sobre a fragmentação.
Eu mesmo, como espectador e leitor de Lavelle, vejo nessa cena do anime algo que transcende o entretenimento. Há uma verdade espiritual ali, uma epifania daquilo que significa ser plenamente. Todos nós, de algum modo, estamos presos aos sentidos, às distrações, às formas múltiplas de dispersão que nos afastam da unidade interior. Ikki, despido de tudo, torna-se paradoxalmente completo: o vazio abre espaço para o absoluto.
Lavelle nos ensina que o ser total não se conquista por adição, mas por despojamento. Não se trata de acumular experiências, mas de viver com a devida intensidade de cada instante, até que a presença torne-se total, indivisível. Talvez o sétimo sentido de Ikki nada mais seja do que isso: o momento em que o sujeito não percebe mais o universo, pois ele é o universo que desperta em si.
Por essa razão, quando penso em Lavelle, não o vejo apenas nos tratados de metafísica, bem como também nas chamas de Fênix. O filósofo francês e o cavaleiro ficcional encontram-se no mesmo horizonte: o da presença absoluta, em que o ser, finalmente, cessa de buscar e simplesmente é.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).