Raskólnikov, personagem central da obra “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski, ao comentar sobre a miséria humana na Rússia do século XIX, em que jovens meninas eram compelidas a se prostituírem para ajudar no sustento da família, lança a impactante frase título desse breve texto: “O Canalha do homem se habitua a tudo! ”.
O ser humano é de fato resignado diante das mais aviltantes afrontas aos direitos fundamentais e aos princípios constitucionais?
Faço esse questionamento, tentando imaginar qual será a atitude os integrantes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal tomarão diante de mais um ato impensado do Presidente da República, Jair Bolsonaro, que, “esquecendo-se” da sua condição de Chefe de Estado e de Governo, propalou a convocação de ato contrário ao Poder Legislativo Federal e ao Supremo Tribunal Federal.
Para aqueles que não tiveram a oportunidade de ver os malsinados vídeos encaminhados por Bolsonaro, trago aqui algumas frases emblemáticas dos apoiadores do movimento “contra os inimigos do Brasil”: “vamos resgatar o nosso poder” e “vamos tomar de volta o nosso Brasil”. O que pretendem o Presidente e seus apoiadores com tal movimento de retomada do Brasil? Estariam a Presidência e o alto escalão do governo (de maioria militar) propensos a praticar um novo golpe militar?
Lembremos que em março de 1964, na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, às véspera do golpe militar de 1º de abril, foram entoadas frases com a mesma conotação, sendo certo que à época os “inimigos” seriam os comunistas que estariam se infiltrando do Brasil e no Poder.
Não há como deixar de reconhecer as semelhanças entres os movimentos, uma vez que parte considerável da população, tal como ocorreu em 1964, inebriada pelo discurso forte de Bolsonaro, veem nele um novo Messias, afirmando que o atual Presidente "é a nossa única esperança" e que é preciso rejeitar "os inimigos do Brasil".
Seria Bolsonaro o salvador da pátria? Acredito não ser! A sequência de equívocos praticados pelo Presidente e seus ministros demonstra a falta de preparo para comandar um país continental, com infindáveis vicissitudes como o Brasil.
Ademais, não se pode esquecer que Bolsonaro, durante a votação do impechament da ex-Presidente Dilma Russeff, declarou, em rede nacional, que estava votando em homenagem ao maior e mais temido torturador do regime militar Coronel Carlos Brilhante Ustra, que dentre suas monstruosidades tinha por hábito e por prazer, fazer os filhos e os pais dos presos do regime acompanharem as crueldades desumanas praticadas contra seus entes. Ustra utilizava de métodos de extrema crueldade como espancamentos, choques nas partes íntimas, afogamentos, sufocamentos em sacos, etc., tudo devidamente comprovado pela Comissão da Verdade. Poderia alguém que apoia essas atrocidades ser o “Messias”?
Será que os apoiadores do ato de hostilidade contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal têm a dimensão das consequências à democracia, aos direitos fundamentais (liberdade, propriedade, vida) com a hipotética tomado do poder pelos militares?
Muitos podem pensar que seria impossível, na atual circunstância, que Bolsonaro conseguisse apoio para um golpe de estado. Também entendo ser bastante difícil que tamanha afronta à Constituição possa ocorrer nos dias de hoje. Mas, como “O Canalha do homem se habitua a tudo!” não é de se estranhar que os milhões de seguidores de Bolsonaro vejam no suposto fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, principal móvel da manifestação do dia 15 de março, a única alternativa para salvar o país das garras da esquerda “corrupta e sanguinária”. Seria o golpe militar a luz no fim do túnel?
*Marcelo Aith é especialista em Direito Criminal e Direito Público e professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito.