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Opinião

Foto: Divulgação

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A Câmara dos Deputados, em uma manobra pouco ortodoxa do seu presidente, aprovou, nessa semana, a tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei nº 1904/2024, proposto pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), integrante da ala bolsonarista e evangélica, que altera, sensivelmente, as regras de tratamento do crime de aborto.

Dentre as alterações há que se destacar a inclusão do parágrafo único ao artigo 128 do Código Penal. Artigo que traz as hipóteses de aborto legal. Estas hipóteses se verificam quando praticadas por médico em duas situações: a) se não há outro meio para salvar a vida da gestante (aborto terapêutico); ou, b) se a gravidez resulta de estupro e o aborto é consentido pela gestante.

O PL 1904/2024 propõe a introdução do parágrafo único com a seguinte redação: “Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo.”. Vejamos. O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) propõe a criação de duas aberrações: a primeira aberração é a figura da viabilidade fetal presumida nas gestações acima de 22 semanas. A segunda, decorrente da primeira, estabelece uma exceção da exceção, ou seja, passadas as 22 semanas, a mulher estuprada, terá que seguir com a gestação de uma gravidez decorrente de um ato de violência sexual, isto mesmo, terá que carregar um feto fruto de um estupro em seu ventre. É vergonhosa essa proposta – nem os países fundamentalistas como Irã e Afeganistão tem uma regra tão estúpida como essa.

Os congressistas que apoiam esse Projeto de Lei esquecem que o Brasil tem dimensões continentais, para além disso, há muitos locais desatendidos ou sub atendidos em relação ao serviço público de saúde. Nessas localidades, que sequer há médicos, não ocorrem estupros que resultam em gravidez? Como ficam as mulheres grávidas nessa situação, que têm que procurar assistência médica em municípios mais estruturados e longe da sua residência, assistências médicas que demoram meses e meses para serem agendadas? Senhores deputados, o Brasil não se restringe aos seus currais eleitorais.

Ademais, não se pode olvidar que as autorizações legais para a prática do aborto, em especial o aborto decorrente de estupro, estão atreladas à dignidade da gestante. A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que a gravidez resultante de estupro é um fator de risco para a saúde mental das mulheres, recomendando que os sistemas de saúde ofereçam suporte psicológico adequado e acesso ao aborto seguro. Era isso que o Congresso Nacional deveria estar preocupado em legislar, bem como exercer seu mister de fiscalizar se o Poder Executivo está oferecendo atendimento à gestante nessa situação.

Dentre as principais consequências da gravidez decorrente de estupro são o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), depressão e a dificuldade de vínculo com o bebê. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático é comum em vítimas de estupro, e se caracteriza por flashbacks, pesadelos e ansiedade severa, na medida em que o corpo da mulher se torna uma lembrança constante do trauma. Em relação à depressão, estudos indicam que mulheres que mantêm uma gravidez decorrente de estupro têm maior probabilidade de desenvolver depressão severa, haja vista a sensação de desamparo e a falta de controle sobre o próprio corpo. Além da dramática dificuldade de manter vínculo com o bebê, o que pode afetar, também, o desenvolvimento infantil.

Infelizmente, essas sensíveis consequências da gravidez fruto do ato de violência sexual não serão discutidas em audiências públicas na Câmara dos Deputados, uma vez que essa importante fase da tramitação do processo legislativo foi manietada pela manobra do Presidente da Câmara que, em 24 segundos, aprovou o regime de urgência, sem ao menos declinar o número do PL que estavam a discutir. Um verdadeiro atropelamento procedimental.

Além disso, questões como a mortalidade materna relacionadas aos abortos inseguros – feitos nas clínicas clandestinas Brasil a fora – foram sumariamente alijados dos debates. Dados publicados recentemente pelo The Lancet e pelo The Guttmacher Report, apontam que os abortos inseguros são a causa de 8 a 11% da mortalidade materna em países de baixo e médio rendimento. Algo surreal se pensarmos que essas mortes seriam completamente evitáveis com uma política séria de aborto em situações de violência sexual. Mas, os deputados resolveram não discutir sobre isso. Possivelmente as questões religiosas estão acima das questões de saúde da mulher na visão dos congressistas subscritores deste aberrante Projeto de Lei.

Outra importante alteração proposta pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) consiste na equiparação do aborto ao crime de homicídio simples. Com isso, por exemplo, o aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, previsto no artigo 124 do Código Penal, cuja pena é de detenção de 1 a 3 anos, passaria, caso aprovado o PL, para pena de reclusão de 6 a 20 anos, ou seja, a pena mínima seria o dobro da pena máxima atual. Qual o sentido disso?

Para além da desproporcionalidade do aumento de pena, essa alteração proposta pode gerar uma situação teratológica. Suponhamos uma interrupção forçada e voluntária de uma gravidez fruto de um estupro, ocorrida após a 22ª semana de gestação, a mulher, vítima da violência sexual, terá, considerando as penas mínimas de cada delito, a mesma pena do estuprador, ou seja, 6 anos de reclusão. Vamos lá, a mulher é estuprada, engravida e por qualquer circunstância deixa passar o prazo de 22 semanas, terá o mesmo tratamento que seu violentador sexual. Qual a lógica disso, deputado Sóstenes Cavalcante? Não podemos esquecer que muitos estupros ocorrem dentro de casa ou por amigos da família, que por circunstâncias mil não são denunciados. Nessas hipóteses poderemos ter uma situação terrível, em que o estuprador sai livre e a vítima é condenada.

Esse Projeto de Lei tem o apoio da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e da bancada da bala, três dos grupos mais conservadores do Legislativo brasileiro – causa inveja aos países fundamentalistas como o Irã que, desde 2004, autoriza o aborto em situações de risco à gestante e nas hipóteses de mal formação do feto, bem como no caso de estupro. Que Deus ilumine o parlamento, para rejeitar esse aberrante Projeto de Lei, que pune a vítima duas vezes.

*Marcelo Aith é advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad D’ Salamanca.