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Opinião

Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.

Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária. Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.

A prescrição farmacêutica no Brasil, tema de grande relevância para a saúde pública, voltou a ser discutida com a publicação da Resolução do Conselho Federal de Farmácia (CFF) nº 2, de 2025. Essa nova resolução, que entrará em vigor em abril de 2025, representa um marco importante na ampliação das atribuições dos farmacêuticos, permitindo-lhes prescrever medicamentos, incluindo aqueles aprovados pela Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa) com venda somente sob prescrição médica. No entanto, o impacto dessa mudança ainda está sendo debatido, principalmente devido à intervenção do Conselho Federal de Medicina (CFM), que já entrou com uma ação judicial para contestar a validade da resolução. Esse impasse jurídico, que poderá levar à suspensão ou revisão das normas, deixa no ar o futuro da prescrição farmacêutica no país.

A Resolução CFF nº 2/2025 surge em um contexto de profundas transformações na atuação dos farmacêuticos no Brasil. Desde a Resolução CFF nº 586, de 2013, - suspensa em 2024 por decisão judicial - houve um avanço na autonomia dos farmacêuticos para prescrever, ressaltando o papel do farmacêutico como orientador. Era possível prescrever qualquer produto sem exigência de prescrição médica, ou seja, medicamentos de venda livre, como analgésicos, antialérgicos, relaxantes musculares, além de cosméticos, suplementos. A prescrição de produtos tarjados “sob receita médica” já ocorria de forma mais limitada, mediante existência de diagnóstico prévio e sob protocolos e diretrizes aprovados em serviços de saúde.

A nova resolução, por sua vez, vai além, permitindo que o farmacêutico prescreva medicamentos sujeitos a receita médica, como antibióticos e antidepressivos, entre outros, desde que haja a qualificação adequada do profissional e a indicação correta para o paciente. Para garantir que essa prática seja realizada de forma responsável, a resolução exige a obtenção do Registro de Qualificação de Especialista (RQE), um certificado que atesta a especialização do farmacêutico nas áreas relacionadas à prescrição.

A exigência do RQE é uma das grandes inovações da nova resolução, pois coloca uma ênfase adicional na qualificação dos farmacêuticos, considerando que a prescrição de medicamentos exige um conhecimento técnico profundo e específico. O farmacêutico, ao adquirir uma especialização e ser registrado como especialista, passa a ter a responsabilidade não só de realizar a prescrição, mas também de monitorar e ajustar os tratamentos de acordo com as necessidades dos pacientes. Com essa medida, o CFF busca garantir maior segurança e qualidade na prática farmacêutica, além de destacar a importância do profissional como agente de saúde integral.

No entanto, a mudança não vem sem controvérsias. A atuação do CFM, que já entrou com medida judicial contra a nova resolução, evidencia a resistência de parte da classe médica a essa ampliação das competências do farmacêutico. Para o CFM, a prescrição de medicamentos, especialmente os sujeitos a controle médico, deve ser uma atribuição exclusiva dos médicos, que são vistos como os profissionais mais preparados para realizar diagnósticos e determinar tratamentos.

O CFM também argumenta que a sobreposição de competências pode causar confusão entre os profissionais de saúde e prejudicar a relação médico-paciente. Por sua vez, os farmacêuticos defendem que possuem conhecimento clínico e farmacológico para receitar e acompanhar pacientes com segurança, o que já acontece na prática em locais onde o acesso a serviços médicos é limitado, quando muitos pacientes recorrem aos farmacêuticos para orientações em atenção primária à saúde.

A decisão judicial que suspendeu parcialmente a Resolução CFF nº 586, por exemplo, já evidenciava o conflito entre as duas categorias, gerando uma atmosfera de incertezas quanto à efetividade da resolução anterior. Agora, com a publicação da nova norma, esse impasse jurídico se agrava, pois a resolução ainda precisa ser validada diante das pressões do CFM e das questões legais que surgem no processo.

Apesar da controvérsia, a nova resolução representa uma medida ainda mais ousada do Conselho Federal de Farmácia para expandir as fronteiras do cuidado farmacêutico. Ao permitir a prescrição de medicamentos, inclusive tarjados, o CFF não apenas reafirma a relevância do farmacêutico no processo de cuidado com o paciente, mas também se posiciona como um protagonista nas políticas de saúde pública. O farmacêutico, agora, tem um papel mais ativo no tratamento e monitoramento de doenças, especialmente aquelas crônicas e que exigem acompanhamento contínuo de terapias complexas.

Essa ampliação de competência, entretanto, exige uma reflexão sobre os desafios que os farmacêuticos enfrentarão na prática. A qualificação necessária para exercer a prescrição de medicamentos deve ser acompanhada de um compromisso com a educação continuada, para garantir que os profissionais estejam atualizados quanto às novas terapias e aos melhores protocolos clínicos. Além disso, a regulamentação precisa ser clara sobre os limites e as responsabilidades dos farmacêuticos, para que a prescrição não seja confundida com ato médico, mantendo sempre o foco na segurança e no bem-estar do paciente.

Em minha opinião, o Conselho Federal de Farmácia fez uma aposta significativa ao ampliar as atribuições do farmacêutico, destacando sua capacidade de atuar de maneira mais proativa no cuidado dos pacientes. Ao permitir a prescrição de medicamentos, o CFF também coloca os farmacêuticos em uma posição de maior responsabilidade, o que, em última instância, contribui para uma abordagem mais integrada da saúde. No entanto, a medida exige um processo de adaptação tanto por parte dos farmacêuticos, que precisarão se qualificar ainda mais, quanto por parte dos órgãos reguladores e do próprio sistema de saúde.

A prescrição farmacêutica é, sem dúvida, um passo importante na direção de um cuidado mais abrangente e multifacetado, mas sua implementação bem-sucedida dependerá de como os conflitos legais, como o envolvendo o CFM, serão resolvidos pelo Judiciário. Com a entrada em vigor da resolução em abril de 2025, espera-se que as discussões em torno do papel do farmacêutico continuem a ser um ponto de debate relevante no campo jurídico e na prática da saúde no Brasil.

*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos.