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Opinião

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

O assassinato do influenciador norte-americano Charlie Kirk em 10 de setembro passado, atingido por um tiro enquanto discursava em uma universidade de Utah, gerou repercussão mundial imediata e bastante dividida: seguidores inflamaram sua imagem de mártir e aproveitaram para atacar a esquerda; simpatizantes desta apontaram o discurso radical de Kirk como combustível para o próprio ataque; e mediando a guerra de narrativas, surgiram apelos por moderação. Fundador da organização Turning Point USA, Kirk era alinhado ao presidente Donald Trump e um dos mais influentes jovens conservadores dos Estados Unidos.

O país assiste ao crescimento da violência praticada por extremistas. Três meses antes, a presidente da Câmara de Representantes de Minnesota, a democrata Melissa Hortman, foi assassinada dentro de casa, junto de seu marido, e o senador democrata estadual John Hoffman foi ferido a tiros em atentado parecido. O próprio Trump foi alvejado por um tiro que lhe acertou a orelha durante comício da campanha de 2024. E, em janeiro de 2021, convocou partidários para ato político em Washington, que culminou na invasão do Capitólio, onde se pretendia evitar a ratificação da vitória de Joe Biden; a violência deixou mortos e feridos. No ano seguinte, a então presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, teve sua casa invadida. Ela não se encontrava no local e seu marido acabou agredido violentamente.

Esses casos demonstram que a polarização extrema se transformou em campo fértil para a violência política, fenômeno que desconhece fronteiras nacionais e ideológicas. Em 2019, o prefeito de Kassel (Alemanha), Walter Lübcke, foi assassinado por um militante neonazista, após defender a política de acolhimento de refugiados. Em 2022, também na Alemanha, um candidato sofreu tentativa de assassinato durante comício. Na França, em 2017, o então candidato Emmanuel Macron foi alvo de uma tentativa frustrada de atentado. Em 2023, o prefeito de Saint-Brevin-les-Pins renunciou após sua casa ser incendiada por opositores de um centro de acolhimento a migrantes.

A violência política deixou de ser exceção para tornar-se risco estrutural, mesmo em democracias maduras. O discurso racional perdeu espaço para a retórica inflamável. Se no passado a praça pública era o palco central da disputa, hoje o embate migrou para o território digital, onde redes sociais e aplicativos de mensagens converteram-se em arenas de linchamento simbólico. A lógica das redes – que premia o engajamento pelo choque e pela fúria – favorece a propagação de boatos, insultos e incitações, e resulta nos atos de violência física.

O Brasil não escapa a essa chaga. A violência e atentados marcaram o ciclo da ditadura militar (1964-1985), com assassinatos, tortura, desaparecimentos forçados e execuções de opositores cometidos pelo regime. A Lei da Anistia de 1979 perdoou crimes tanto de agentes do Estado quanto de grupos armados de esquerda, gerando controvérsia por não permitir a punição de militares por casos graves como tortura e homicídio. Antes e durante esse período, o país viveu experiências traumáticas, como o atentado da Rua Tonelero em 1954, no Rio de Janeiro, que visava o jornalista Carlos Lacerda, opositor do então presidente Getúlio Vargas; e o atentado do Aeroporto dos Guararapes (1966), quando uma bomba matou o almirante Nelson Fernandes e o jornalista Edson Regis. (Eu estava lá, como repórter da Folha de São Paulo).

Os casos remontam ao início de sua história republicana, mas a natureza dos crimes políticos contemporâneos mudou, passando da repressão violenta de opositores a crimes de corrupção e abuso de poder na democracia, ao lado da persistência da violência política, especialmente em anos eleitorais. Um estudo realizado pela Unirio em 2024 registrou 76 mortos e 525 casos de ameaças e agressões recentes, com destaque para o atentado contra Jair Bolsonaro (2018), então candidato à Presidência, alvo de uma facada durante evento de campanha. Ele próprio viria, depois, ser acusado de liderar a tentativa de um golpe contra o Estado Democrático de Direito entre dezembro de 2024 e 8 de janeiro de 2025, crime pelo qual foi condenado à prisão pelo STF, por 27 anos e três meses. A violência recente leva o país para o terreno de polarização radical, com pressão e contrapressão de simpatizantes do bolsonarismo e de grupos de esquerda e, certamente, o tema balizará o pleito de 2026.

Outro fato preocupante é o avanço de facções criminosas sobre as instituições públicas, especialmente em nível municipal, que tem sido apontado como um dos traços distintivos dos crimes políticos contemporâneos no Brasil. O espaço de debate cede lugar ao ringue. Prefeitos de cidades pequenas, vereadores de oposição e candidatos de diferentes partidos tornam-se alvos de pistolagem, perseguição e ataques virtuais. Em períodos eleitorais, multiplicam-se relatos de intimidações, destruição de material de campanha e agressões motivadas por preferências partidárias.

Essa violência transborda para a vida real; o eleitor sente-se autorizado a agredir o vizinho por sua opção partidária, o militante liberado para agredir fisicamente quem defende ideias contrárias, enquanto o político vê sua integridade ameaçada por hordas estimuladas por influenciadores irresponsáveis.

A democracia brasileira enfrenta um teste decisivo. Se aceitarmos a naturalização da violência política, corremos o risco de abrir caminho para regimes autoritários que se apresentam como "salvadores da ordem", à base da repressão. A lição da história é clara: a violência política nunca fortaleceu a democracia; pelo contrário, sempre a corroeu.

A democracia se sustenta no conflito, mas um conflito mediado pela razão, pelo direito e pelo respeito. Quando o debate se transforma em guerra, todos perdem. Quando a política é violenta, a sociedade se torna refém do medo e de mais violência. O Brasil precisa, mais do que nunca, reafirmar sua vocação democrática: resolver divergências pelo voto, não pelo ódio.

*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.