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Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Todos, invariavelmente, já tiveram a oportunidade de entrar em contato com pessoas falsas (há até uma nomenclatura comum a elas, dada por um certo grupo, de falsianes) e depararam-se com a “leveza” e com o jogo de palavras agradáveis. Alguns dirão que isso é absolutamente comum, uma vez que os papéis sociais que são desempenhados criam relações hierárquicas de poder, o que por sua vez, mediante uma perspectiva de compressão do funcionamento do circuito social, está correto. Porém, tais papéis, e seus respectivos encargos, são, nada mais nada menos, formas de atuação cujo preenchimento encontra-se dependente de subjetividades relativamente autônomas. Isso significa, entre tantas coisas, que até um certo ponto, é possível escolher ser quem se é de fato e não quem se deve ser para tal o qual conjunto de pessoas e suas situações.

Uma questão faz-se presente: qual a implicação da teatralização para o coletivo?

A teatralização, ao ganhar centralidade na vida pública, converte-se em uma engrenagem que alimenta tanto a manutenção de aparências quanto a fragilidade do laço social. Quando a forma se sobrepõe ao conteúdo, como apontado por diversos analistas contemporâneos, aquilo que deveria ser diálogo honesto transforma-se em uma encenação cujo objetivo é apenas aplaudir ou ser aplaudido. O problema não está no jogo retórico em si, afinal, a palavra possui mesmo a potência de criar mundos, antes no uso que dela se faz. O “tom” elegante e o discurso afinado com a expectativa alheia escondem, não raras vezes, a ausência de convicção, de coragem e de virtude.

Teatralizar, portanto, não é apenas um artifício individual, mas um sintoma de uma sociedade que converteu a verdade em mero ponto de vista, como se todo o real pudesse ser reduzido a um jogo de discursos. Nietzsche já alertava, no século XIX, que as verdades não passam de ilusões esquecidas enquanto tais, metáforas que, repetidas, tornam-se convenções. O problema é que, na atualidade, esse caráter ilusório deixou de ser desvelado: ao contrário, é celebrado como virtude, como se a habilidade de sustentar máscaras fosse mais valiosa do que a coragem de mostrar o rosto.

No entanto, essa normatividade das máscaras traz consigo uma consequência grave: a dissolução da confiança e do sentido. Quando tudo é atuação, já não se sabe o que é real; quando todos desempenham papéis, o silêncio da autenticidade torna-se inaudível. Arendt lembrava que a política deveria ser o espaço da palavra e da ação verdadeiras, entretanto, sob o império da teatralização, a palavra degenera em retórica e a ação em encenação.

Nesse direcionamento, a teatralização corrói o ethos coletivo porque substitui a confiança pela suspeita. Aquele que atua em excesso, ajustando-se a cada plateia, pode até conquistar a simpatia imediata, contudo, inevitavelmente mina a própria credibilidade. A retórica do aplauso (presente com maior verticalidade no texto “Quando a retórico do aplauso corrompe a honestidade, publicado no Conexão Tocantins), tão bem denunciada em nossos dias, transforma a política, a vida institucional e até as relações mais triviais em um campo de vaidades, no qual a busca por prestígio sobrepõe-se à construção de valores duradouros.

Se Maquiavel advertiu sobre a força das aparências na manutenção do poder, cabe reconhecer que o problema não é apenas histórico: ele é atual e cotidiano (vide “A sedução do poder sem virtude por que o legado de Maquiavel ainda nos assombra”, também publicado no Conexão Tocantins). A diferença é que, na sociedade midiatizada, a encenação não se restringe aos governantes ou aos estrategistas da corte; ela se espraia pelas redes sociais, pelas empresas, pelas universidades e até pelas relações pessoais, fazendo com que o teatro da vaidade torne-se um imperativo de sobrevivência. O risco é que, ao naturalizar esse estado de coisas, todos se acostumem a conviver com a falsidade como se fosse virtude, confundindo simpatia com honestidade e eloquência com sabedoria.

Assim, a implicação maior da teatralização para o coletivo é o esvaziamento do próprio espaço público. Quando todos desempenham papéis e poucos assumem responsabilidades, com suas devidas prerrogativas subjetivas pautadas na ética (aqui entendida como padronização da retidão comportamental) da conduta, o que resta é um cenário de aparências, no qual a verdade perde seu lugar e a confiança dissolve-se no jogo de máscaras. O desafio que se impõe é resistir à sedução do poder sem virtude e retomar a primazia da substância sobre a forma, da integridade sobre a performance, ainda que isso implique renunciar ao aplauso fácil para sustentar a difícil tarefa de ser, antes de tudo, autêntico. 

É precisamente por isso que romper com tais padrões teatrais da vida coletiva torna-se uma urgência. Não se trata de um gesto romântico de retorno à essência perdida, mas de um ato ético e existencial de recusar o jogo viciado das aparências. Ser autêntico, nessa conjuntura, é um desafio radical: é expor-se ao risco da rejeição, do isolamento, talvez até do silêncio. Porém, é, sobretudo, uma forma de resistência contra a colonização da vida pela máscara teatral.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).