Após ler a obra “Homens, engenharias e rumos sociais”, de Gilberto Freyre, e comparar seus diversos comentários acerca do ensino e da formação intelectual brasileira com a própria realidade ensejada pelo momento presente é possível afirmar sem medo que há um orgulho da ignorância já bem consolidado no maior país da América do Sul. Freyre destaca que existe já em seu tempo (meados de 1950) uma deterioração tanto do ensino universitário quanto da própria intelectualidade nacional, em um movimento de retroalimentação um do outro.
Essa deterioração, longe de ser superada nas décadas subsequentes, tornou-se uma espécie de identidade subterrânea que atravessa a história recente do país, alcançando no presente sua forma mais desinibida e, por vezes, celebratória. Em tempos de hiperinformação e banalização do saber, o Brasil parece ter encontrado na ignorância não apenas um estado de privação, mas um modo de estar no mundo. Aquilo que antes era um déficit a ser corrigido converteu-se em trunfo retórico, em posicionamento político, em marca de pertencimento. Vivemos, paradoxalmente, a glorificação da ignorância como uma forma de saber “autêntico”, um saber originário por nascimento, anterior a qualquer mediação educativa ou processo de formação crítica.
Trata-se, em muitos casos, de uma ignorância ativa, militante, que se pretende legítima justamente por sua suposta espontaneidade. Vê-se isso em estudantes que, após apresentarem trabalhos de ínfima qualidade, reprováveis tanto em conteúdo quanto em forma, insurgem-se contra os critérios avaliativos, alegando que sua condição de nativos de uma ignorância tradicional lhes confere o direito de permanecer como estão. É como se a recusa à aprendizagem fosse uma expressão de autonomia, e não de estagnação intelectual. Nessa lógica invertida, o esforço por aprender é visto com desconfiança, como submissão a uma ordem imposta, enquanto o descompromisso com o saber é reconfigurado como resistência simbólica.
Não se trata, contudo, apenas de uma ignorância espontânea ou de uma resistência popular à cultura letrada. É preciso reconhecer que a própria estrutura da educação formal brasileira foi historicamente arquitetada para não ensinar. A escola pública, especialmente aquela destinada às classes subalternas, tem funcionado, em larga medida, como um dispositivo de domesticação, mais preocupado em disciplinar corpos do que em formar consciências. A fragmentação dos conteúdos, a obediência cega a currículos tecnocráticos, a imposição de avaliações padronizadas e o esvaziamento da função crítica do ensino são sintomas de um sistema que simula ensino, mas não forma. Essa engenharia do não-saber não é acidente: é estratégia (como muito bem explica Darcy Ribeiro). Ela opera sob o manto de uma universalização ilusória, na qual o acesso formal à escola não se converte em acesso real ao conhecimento, reproduzindo as desigualdades que deveria combater.
Assim, o fracasso escolar não é um efeito colateral indesejado, mas um componente funcional de um modelo político de educação cuja finalidade velada é a reprodução da hierarquia social. Ensinar a ler, escrever e pensar criticamente seria, nesse quadro, uma ameaça à estabilidade das elites políticas, pois significaria fornecer instrumentos de contestação àqueles que foram historicamente reduzidos à condição de subalternidade. Como já alertava Althusser, a escola é o principal aparelho ideológico do Estado, um local no qual se transmitem os saberes “legítimos”, mas também no qual se forjam os sujeitos dóceis, obedientes e acríticos. No Brasil, essa lógica intensifica-se em um contexto no qual o ensino público é cronicamente sucateado e o ensino privado, por sua vez, raramente ultrapassa a lógica do adestramento tecnicista. Ensinar a não pensar tornou-se, portanto, a missão não declarada de um sistema educacional comprometido com a manutenção de sua própria esterilidade intelectual.
Essa inversão acentua-se em um país que, historicamente, não cultivou com afinco o pensamento crítico e cujas elites políticas e econômicas souberam lucrar com a manutenção do obscurantismo. A ignorância, nesse contexto, é tanto efeito quanto instrumento de um projeto de dominação. Entretanto, ela também ganha camadas mais complexas: ao ser apropriada como forma de expressão legítima, e até mesmo identitária, ela se naturaliza, estetiza-se, transforma-se em performance pública. A aversão à leitura, a negação da ciência, o desprezo pela cultura acadêmica e pelo debate fundamentado passam a ser praticados com orgulho e ostentação, como se fossem valores em si mesmos.
O que se vê, portanto, é uma espécie de “ressentimento cognitivo”, no qual o saber é odiado por aquilo que denuncia: o desnível, a incompletude, a necessidade de esforço. Melhor, então, transfigurar a ignorância em virtude, e condenar o saber como vício da elite (essa crítica paulatinamente vem entrando em vigor). Esse mecanismo é profundamente deletério, pois inverte o horizonte da formação humana e transforma o ambiente escolar ou universitário em espaço de negação do seu próprio fim.
O Brasil, nesse sentido, parece viver sob a égide de um anti-intelectualismo que, paradoxalmente, dissimula-se sob a forma de resistência cultural e identidade autêntica. Quando reconhece sua condição, não o faz com vergonha, mas com altivez, um orgulho ruidoso da própria ignorância, que se legitima como saber tradicional, espontâneo e nativo. Trata-se de uma modalidade de resistência tipicamente brasileira, forjada na tensão entre o desprezo pelas elites letradas e a recusa ao esforço cognitivo, entre o ressentimento histórico e a encenação da autonomia. Esse orgulho, ao invés de confrontar o poder que exclui, alinha-se a ele ao manter os sujeitos cativos da superficialidade, alijados da crítica e da transformação. Ao pretender subverter a ordem do saber instituído, apenas reafirma os abismos históricos da exclusão e da mediocridade, os converte, perigosamente, em bandeira de pertencimento e em forma de permanência.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.