Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que propõe conceder anistia a investigados e condenados pelos atos de 8 de janeiro de 2023, quando manifestantes invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília.
De autoria do deputado Marcello Crivella, o texto estabelece como marco inicial 14 de março de 2019 — data do início do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF) —, mas o alvo principal são os atos preparatórios e executórios do 8 de janeiro. A proposta prevê a extinção de penas, a redefinição de crimes no Código Penal e até a desconsideração de certas condutas como delitos, alcançando pessoas já condenadas ou em processo judicial.
Os defensores da medida a apresentam como um gesto de pacificação política, reconciliação social e reparação de supostas injustiças, sobretudo em relação a manifestantes de baixa renda, que teriam tido pouca representação legal e recebido penas desproporcionais.
Por outro lado, juristas, entidades de direitos humanos e autoridades judiciais apontam sérios riscos. O projeto pode afrontar princípios constitucionais essenciais:
Legalidade e separação de Poderes: o Legislativo interferiria diretamente em decisões judiciais, inclusive já transitadas em julgado, comprometendo a independência do Judiciário.
Impessoalidade, moralidade e probidade: perdoar condutas graves contra a ordem democrática pode ser interpretado como indulgência incompatível com os valores republicanos.
Mais do que isso, a proposta entra em choque com cláusulas pétreas da Constituição, como a forma republicana de governo, o regime democrático e o próprio Estado de Direito. Crimes contra a democracia não são passíveis de anistia ampla, sob pena de relativizar a proteção constitucional das instituições.
Conceder perdão nesses casos envia um sinal perigoso: o de que ataques violentos contra as instituições podem ficar impunes, a depender das circunstâncias políticas.
O STF já indicou que dificilmente admitirá uma lei de anistia generalizada para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Ministros alertaram que o projeto, se aprovado em tais termos, será considerado inconstitucional.
É importante lembrar que não se trata aqui da defesa da liberdade de expressão ou do direito de manifestação política. Os episódios de janeiro de 2023 resultaram em violência, depredação do patrimônio público e tentativa de subversão da ordem democrática — condutas que, pela leitura sistemática da Constituição, configuram crimes de alta gravidade e não podem ser tratados como meros excessos políticos.
A anistia proposta, portanto, coloca em xeque não apenas a coerência do sistema jurídico, mas a legitimidade das próprias instituições democráticas. Se por um lado se apresenta como gesto de reconciliação, por outro ameaça corroer princípios fundamentais da Constituição e enfraquecer a confiança na Justiça.
O desfecho dependerá do texto final aprovado pelo Congresso, de eventuais vetos presidenciais e, certamente, do crivo do STF em sede de controle de constitucionalidade. Espera-se que a condução desse debate esteja à altura do desafio histórico: preservar o Estado Democrático de Direito em detrimento de interesses particulares ou de grupos momentaneamente beneficiados.
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Doutorando Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca - ESP. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad de Salamanca.