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Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Em uma sociedade marcada por assimetrias estruturais, compreender as nuances do capital cultural torna-se tarefa não apenas urgente, mas necessária para decifrar os mecanismos de reprodução e mobilidade social. Concebido por Pierre Bourdieu como um dos pilares da teoria dos campos e das formas de capital (econômico, social, simbólico e cultural), o capital cultural designa os saberes, competências, disposições e referências simbólicas acumuladas por um sujeito ao longo de sua trajetória. Sua importância, longe de se restringir aos círculos acadêmicos, atravessa o tecido social e repercute nas formas pelas quais os indivíduos são reconhecidos, valorizados e posicionados no espaço social.

Na atualidade, marcada por uma economia da atenção, por fluxos informacionais intensificados e por uma hiperexposição a bens simbólicos, o capital cultural adquire ainda mais centralidade. Ele opera como filtro de inteligibilidade do mundo, possibilitando que o sujeito não apenas consuma, mas compreenda criticamente os signos e discursos que o interpelam cotidianamente. A competência para interpretar uma obra literária, para apreciar uma performance artística, para distinguir uma referência filosófica ou mesmo para identificar um viés argumentativo em um discurso jornalístico, por exemplo, não decorre do acaso, mas de um processo formativo impregnado de condições sociais, históricas e econômicas.

É precisamente nesse ponto que se evidencia a desigualdade na aquisição do capital cultural. Diferente do capital econômico, cuja transmissão pode se dar de forma direta e quantificável, o capital cultural se estrutura de modo mais sutil, muitas vezes por herança simbólica, pelo convívio familiar, pela frequência a certos espaços (museus, bibliotecas, universidades, concertos) e pelo acesso a práticas discursivas legitimadas socialmente. Nesse sentido, um sujeito oriundo das camadas médias ou altas tende a ser socializado, desde a infância, em um ambiente onde o capital cultural é amplamente disponibilizado, reforçado e recompensado. Livros circulam naturalmente, o vocabulário é estimulado, as referências são diversificadas e o repertório, continuamente ampliado.

Já entre os segmentos populares, embora haja uma riqueza cultural legítima e formas autênticas de saber, a conversão desses saberes em capital cultural reconhecido institucionalmente é dificultada. A escola, instância central na mediação e validação do capital cultural, muitas vezes atua mais como reprodutora das desigualdades do que como agente de transformação. A ausência de familiaridade prévia com os códigos valorizados escolarmente (norma padrão, literatura canônica, lógica argumentativa dissertativa) gera desvantagens que se acumulam ao longo do percurso educativo, culminando em trajetórias mais restritas de mobilidade.

Contudo, é preciso evitar leituras deterministas. O capital cultural, ainda que ancorado em estruturas, pode ser apropriado por sujeitos de diferentes origens sociais, especialmente quando há políticas públicas consistentes de democratização do acesso ao conhecimento. Programas de fomento à leitura, ações afirmativas no ensino superior, valorização de saberes tradicionais e inclusão digital têm o potencial de ampliar o leque de oportunidades formativas e de inserção simbólica. Mais do que uma questão de acúmulo individual, trata-se de reconhecer que o capital cultural é também uma construção coletiva, que pode ser estimulada e distribuída com mais equidade.

Importa destacar, ainda, que o capital cultural não é estático, mas historicamente situado. Aquilo que outrora era considerado prestigioso pode perder valor simbólico, enquanto novas formas de saber (como a literacia digital, a competência midiática e o domínio de linguagens híbridas) ganham centralidade. O sujeito contemporâneo, para navegar com desenvoltura nas múltiplas esferas da vida social, precisa manejar diferentes registros, cruzar fronteiras discursivas e articular repertórios interdisciplinares. Assim, o capital cultural se reconfigura, exigindo plasticidade cognitiva, abertura à alteridade e disposição para o aprendizado contínuo.

É nesse entrelaçamento entre estrutura e agência, tradição e inovação, que se delineia o papel crucial do capital cultural na contemporaneidade. Ele não apenas define trajetórias individuais, mas informa decisões coletivas, orienta práticas institucionais e molda as possibilidades de construção de sentido. Reconhecê-lo como bem simbólico estratégico e democratizar suas formas de acesso é condição para uma sociedade menos hierárquica e mais igualitária, onde o mérito não se confunda com privilégio, e onde os saberes possam circular sem barreiras que os tornem propriedade de poucos.

Portanto, o capital cultural não é um ornamento elitista nem um luxo acadêmico: é instrumento de empoderamento, linguagem de pertencimento e chave de leitura do mundo. Sua valorização, em tempos de desinformação e superficialidade, é ato de resistência e de compromisso ético com a construção de uma cidadania crítica e plural.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).