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Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Na atualidade, tem-se um conjunto relativamente extenso de procedimentos voltados à arte de convencer. Claro, a despeito dos instrumentos empregados no processo comunicativo, destaca-se, antes de qualquer outro, a episteme contemporânea da sutileza, um regime de dizer que traduz as mais impiedosas formas de enganação. Nesse direcionamento, opera-se a pérfida empresa de converter a “Retórica” de Aristóteles num simples manual de persuasão sem os critérios de sua “Poética”, tampouco com o crivo rigoroso da dialética. Contudo, o que se percebe no presente é o predomínio de uma comunicação que valoriza mais como se diz do que o que se diz.

Quando alguém fala sobre política no Brasil, não sendo, claro, um de seus operadores diretamente afetados, manifesta indignação, muitas vezes teatralizada. É sabido que a política no gigante da América Latina beira o espetáculo dos horrores. Contudo, o que resta, ao final, não é o conteúdo da fala, mas o estado de espírito do indignado. Esse tipo de interação é comum e bastante conhecido. Outro exemplo, de natureza diversa, confirma a mesma tendência: a missa. Nela, o tom monocórdio do celebrante constitui a medula do ritual, deixando nos participantes a sensação de bem-estar, mais pela cadência da entonação que pelas palavras em si.

Em algumas igrejas evangélicas, o apreço pela expressividade na declamação de passagens sagradas é percebido como manifestação do próprio Espírito Santo tocando o fiel. Em outros termos, o conteúdo é guiado pelo modo de dizer. Uma vez posto em marcha tal expediente, e entendido como necessário, a fôrma passa a ser tão relevante quanto seu preenchimento. É o princípio da intencionalidade (da pragmática) estendido à modalidade expressiva, sobretudo da fala. Ao contrário, na escrita, há de se lançar mão de artifícios como adjetivos, advérbios e léxicos de tonalidade específica para sugerir um “tom”; ainda assim, corre-se o risco de que a intencionalidade não seja percebida. Já na fala, principalmente na atualidade, cobra-se que o tom seja gentil, amável, e, se possível, elegante.

Quem nunca foi ríspido que atire a primeira pedra, ou receba a primeira censura. Há temas e situações que provocam acelerações afetivas, cujo coeficiente entre estímulos internos e externos compromete a serenidade do tom. Nem sempre é possível ser agradável ou gentil como o esperado, e, nesse caso, ser tachado de “excessivo” pode ocultar um elogio à intensidade da presença, travestido de julgamento moralista. Assim, emerge uma crítica persistente a quem destoa do tom exigido, pois o conteúdo da interação, pouco a pouco, ocupa um plano secundário nos processos comunicacionais.

Essa lógica se estende para além do campo político ou religioso. A linguagem empresarial, por exemplo, elege o tom positivo como valor: reuniões de feedback são cuidadosamente roteirizadas para preservar a cordialidade do ambiente, ainda que o conteúdo seja de desaprovação. Nas redes sociais, o tom da legenda muitas vezes importa mais do que a imagem postada. Até mesmo nas práticas educacionais, o “tom acolhedor” tornou-se uma expectativa institucional, frequentemente sobrepondo-se ao rigor do conteúdo.

O resultado é uma sociedade cada vez mais submetida ao império do tom. A forma passa a atuar como disfarce da intenção, como camuflagem do real. Em um mundo onde tudo deve soar agradável, o dissenso transforma-se em ruído indesejável, e a linguagem, antes instrumento de crítica e expressão, torna-se artifício de sedução. É nesse ponto que se trai Aristóteles: em sua “Retórica”, não há espaço para a dissociação entre forma e conteúdo, pois o logos, a razão do discurso, é inseparável da verdade que se visa comunicar. O dizer, para ele, não era ornamento; era substância. Reverter essa inversão contemporânea talvez seja o primeiro passo para restituir à linguagem sua função mais nobre: a de pensar, inquietar e, por vezes, desagradar.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).