A formatação do modo de pensar ocidental foi realizada, fundamentalmente, por Platão e Aristóteles, personagens icônicos de um mundo antigo, mas que se fazem presentes até hoje. Talvez seja um tanto quanto imprudente afirmar que os dois filósofos gregos são apenas entidades muito relevantes para a vida intelectual que verseja em livros e em debates mais profundos. De modo decisivo, Platão e Aristóteles configuraram a razão e seus modos de operar no oeste do globo terrestre, uma vez que fundam caminhos por meio dos quais até agora são empregados para produzir conhecimento (quiçá os dois já tenham produzido a maior parte do conhecimento alcançável pela razão humana).
Alguém pode dizer sobre Platão e Aristóteles: “não conheço; nunca li; ouvi falar na escola”. Contudo, é preciso saber: tal desconhecimento, em hipótese alguma, é um impeditivo para que o saber desenvolvido por eles tenha efeito sobre quem quer que seja. A iluminação da razão idealista e a instrumentalização dos sentidos devem tanto a um quanto a outro tudo que são hoje. No entanto, a modernidade também se constituiu como um projeto de emancipação dos mortos. Ao proclamar o “esclarecimento” e a ruptura com as tradições, o Iluminismo europeu tentou apagar a dependência dos legados arcaicos em nome da autonomia da razão. Kant, por exemplo, propôs um pensamento que se libertasse da tutela do passado. Contudo, como advertiu Nietzsche, até mesmo esse gesto moderno carrega o peso dos ancestrais: o homem moderno é um “animal histórico”, saturado de memórias, genealogias, e heranças não resolvidas. A promessa de uma razão autônoma jamais se cumpre inteiramente, pois a própria ideia de “autonomia” repousa sobre fundamentos clássicos. Assim, o governo dos mortos é também aquilo que se oculta sob o disfarce da liberdade dos vivos.
De maneira relativamente similar, Homero, com a Ilíada e a Odisseia, delineou os possíveis horizontes da narrativa heroica, não apenas por ser um dos primeiros a tecer o gênero, mas por dá-lo a estatura de mito-visionária de toda uma sociedade em seus dias de glória. Como afirmar que Homero não exerce influência sobre aqueles que destinam parte de suas vidas a conhecer as guerras do passado, os amores desiguais entre divindades e humanos? O desconhecimento deste nome não representa qualquer interdição sobre sua atuação imaterial no circuito coletivo, ao contrário, muitos ainda lidarão com o “cavalo de Troia”, com o “toque de Midas” ou com o “calcanhar de Aquiles”.
A noção de "governo dos vivos pelos mortos" não se reduz a uma imagem poética ou a uma provocação metafísica: ela pode ser pensada nos termos de uma verdadeira “governamentalidade simbólica”. Michel Foucault, ao investigar as formas pelas quais os discursos instituem regimes de verdade, já indicava que o poder não se exerce apenas por meio de instituições formais, mas também por meio da incorporação subjetiva de normas históricas herdadas. A razão clássica, configurada por Platão e Aristóteles, é uma dessas heranças: ela continua a organizar o pensamento, a definir o que é legítimo conhecer, a demarcar as fronteiras do pensável. Em outras palavras, os mortos não nos governam porque os veneramos, mas porque ainda pensamos segundo as categorias que nos legaram.
Jacques Derrida nomeou esse fenômeno de forma eloquente: “hantologie”, a presença dos mortos como espectros que assombram os vivos. O pensamento não está livre da história, mas é constantemente assombrado por ela. Giorgio Agamben, por sua vez, afirma que a tradição atua como aquilo que nos é simultaneamente familiar e estranho: um legado que insiste, que retorna, que exige ser pensado, ainda que não mais pertença ao nosso tempo. Nesse direcionamento, os mortos não apenas nos governam: eles nos convocam a reabrir os arquivos, a repensar os fundamentos, a escutar aquilo que permanece não resolvido no passado. O governo dos mortos dá-se, portanto, não como dominação, mas como interrogação: somos governados pela necessidade de responder ao que foi deixado sem resposta.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).